O Auto da Compadecida é um filme brasileiro, de 2000, que conta a história de Chicó (Selton Mello, de O Palhaço) e João Grilo (Matheus Nachtergaele, de Piedade), dois sertanejos espertos, que vivem em uma pacata cidade do interior, dando os mais variados tipos de golpe, Chicó com sua beleza e capacidade de seduzir qualquer mulher da cidade, e João Grilo com sua inteligência, astúcia e perspicácia.
A vida de João Grilo e Chicó muda completamente quando a cidade é invadida por um grupo de cangaceiros, chefiado por Severino (Marco Nanini, de Greta), que mata indistintamente qualquer um que cruze seu caminho, e ameaça a dupla. Matando, inclusive, o padre (Rogério Cardoso, de Bossa Nova), o bispo (Lima Duarte, de O Juízo), o padeiro (Diogo Vilela, de O Grande Mentecapto), e Dora (Denise Fraga, de As Melhores Coisas do Mundo), a esposa do padeiro.
Para se livrar da morte, João Grilo decide trapacear o cangaceiro, valendo-se da conhecida crença que o cangaceiro tinha em Padre Cícero, dizendo possuir uma gaita capaz de despertar as pessoas, quando tocada após suas mortes e, para convencer Severino, João Grilo e Chicó forjam a morte deste, para Grilo tocar a gaita e Chicó fingir que despertou, trazendo uma mensagem de Padre Cícero a Severino.
Após a encenação, Severino fica convencido dos poderes da gaita e pede para ser executado e, depois, seu carrasco tocar a gaita. Contudo, o cangaceiro percebe que a dupla havia enganado Severino e, revoltado, atira contra João Grilo, ceifando-lhe a vida. A seguir, João Grilo desperta no purgatório, onde, dentre vários rostos desconhecidos, reconhece Severino, o padeiro, Dora, o bispo e o padre, todos quase mandados “para os quintos dos infernos”, por pura raiva do Demônio (Luís Melo, de Olga); mas o castigo é interpelado por Jesus Cristo (Maurício Gonçalves, de O Duelo), que, a chamado de João Grilo, aparece para decidir quem vai ser salvo.
Uma vez presente Jesus Cristo no recinto, inicia-se um verdadeiro julgamento, em que o Demônio é o promotor de justiça e Jesus Cristo é o juiz, a analisar cada um dos casos que lhe é apresentado: o bispo é acusado de simonia, por aprovar o enterro de um cachorro em latim, em troca de dinheiro; velhacaria; arrogância com os pequenos; e subserviência com os grandes. O padre é denunciado sob as mesmas acusações do bispo; o padeiro e Dora são acusados, conjuntamente, de serem os piores patrões que Taperoá já viu, além de o padeiro ser apontado como avarento e Dora como adúltera. Severino é acusado pelo homicídio de mais de trinta pessoas e João Grilo, por fim, de incitação à simonia; estelionato; incitação à concupiscência; e crime premeditado, pelo homicídio de Severino.
Lido o relatório, João Grilo não se dá por satisfeito com a presença do promotor e do juiz, razão pela qual clama para que apareça sua defensora: Virgem Maria (Fernanda Montenegro, de A Vida Invisível) que, um a um, consegue livrar todos de suas acusações, fazendo-os irem para o céu, e, chegada a vez de João Grilo, não roga por sua absolvição, mas sim por clemência, pedindo que a ele seja dada mais uma chance, o que é acatado por Jesus Cristo, e João Grilo volta à vida.
O julgamento de O Auto da Compadecida traz uma série de similitudes com o julgamento tradicional, e com a imagem que o povo tem de um tribunal, mormente quando mostra um impetuoso promotor de justiça, tal qual se via a figura do promotor em tempos remotos, que busca pela punição acima de qualquer coisa; o juiz é retratado como Deus, que, por mais bondoso que seja, não se deixa influenciar por um só lado, demonstrando certa imparcialidade em seu julgamento; e a defensora age com misericórdia por aqueles que ela defende.
Contudo, diferentemente do retratado como a justiça divina do filme, na justiça dos homens esse julgamento seria completamente inválido, na medida em que o magistrado é suspeito, posto que irmão do promotor de justiça e filho da defensora.
Por mais que O Auto da Compadecida retrate certa imparcialidade do juiz, é evidente sua repulsa pelo promotor, em falas como “é besteira do Demônio. O sujeito é meio espírita e tem mania de fazer mágica”, ao passo que ama e respeita, mais que tudo, a defensora, o que fica evidente ao denegar o protesto do Demônio, lhe dizendo “eu sei que você protesta, mas não tenho o que fazer, meu velho… discordar da minha mãe é que eu não vou”.
Além disso, o promotor de justiça deixa de cumprir sua função constitucional de guardião da ordem jurídica, e se mostra um verdadeiro carrasco, que, inclusive, queria punir os acusados antes mesmo de lhes garantir um julgamento formal, retratando o quão tirano pode se tornar um indivíduo que detenha o poder de acusar, punir e executar a pena de uma só vez.
Para evitar promotores de justiça que sejam diabólicos (com o perdão do trocadilho) como o do filme, há a separação de funções do Poder Judiciário, Poder Executivo e do Poder Legislativo, chamada de tripartição de poderes, que garante que os poderes ajam cumprindo funções que lhes são precípuas, mas também que garantam um sistema de freios-e-contrapesos, na atuação um do outro, evitando os abusos dos demais poderes.
Fora desta tripartição de poderes, há o que a Constituição de 1988 chama de “funções essenciais à justiça”, que visa a garantia dos direitos fundamentais, mediante o assegurado acesso à justiça. Isto é, se os direitos e garantias fundamentais fossem violados e não houvessem as funções essenciais à justiça, a sociedade estaria desamparada, porque não teria como acionar o Poder Judiciário, para repelir estas violações, então estas funções são primordiais para a salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos e, dentre elas, estão o Ministério Público e a Defensoria Pública, por exemplo.
O Ministério Público não chega a ser um quarto poder, mas detém tratamento especial na CF, de modo que a instituição está protegida da intervenção dos outros Poderes e os seus membros têm independência no exercício de suas funções.
Neste sentido, não existe um julgador ou um promotor responsáveis por acusar, julgar, punir e executar a pena, porque cada uma destas funções compete a um órgão: o Ministério Público (órgão essencial à Justiça) oferece a denúncia, salvo nos casos em que a própria vítima possa fazê-lo; o Judiciário, representado pelo magistrado, julga e comina a pena; e a vara especializada de execuções fica responsável pelo acompanhamento do cumprimento da pena.
Além disso, a Constituição de 1988 prevê expressamente que ao Ministério Público incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, isto é: mais do que tão-somente acusar, o Ministério Público é responsável por, ao longo do julgamento, manter a ordem jurídica e os direitos e garantias individuais do acusado, razão pela qual pode, ao final do processo (e deve, se assim for o caso), requerer a absolvição do indivíduo que outrora ele mesmo, Ministério Público, havia denunciado.
Portanto, em que pese haver na vida real alguns operadores do direito que pensam estar vivendo a realidade de O Auto da Compadecida, é absolutamente inconstitucional a atuação de juízes que se acham deuses, agindo em desacordo com as normas legais e constitucionais, deixando, por exemplo, de declarar sua imparcialidade ou suspeição, quando tem vínculo de amor ou ódio com as partes envolvidas no processo; bem como é inconstitucional a atuação carrasca de promotores de justiça que, acima dos direitos e garantias fundamentais dos acusados, buscam sua punição pelo mero prazer de ver aquela pessoa, tão querida e conhecida na cidade, sendo punida.
(O Auto da Compadecida, BRA, 1999, 104 min.)
Comédia | Direção: Guel Arraes | Roteiro: Ariano Suassuna (peça), Guel Arraes, Adriana Falcão, João Falcão
Elenco: Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Rogério Cardoso, Denise Fraga, Diogo Vilela, Luís Melo, Virginia Cavendish, Bruno Garcia, Enrique Diaz, Maurício Gonçalves, Fernanda Montenegro