Crítica | Streaming e VoD

Privacidade Hackeada

(The Great Hack, EUA, 2019)
Documentário
Direção: Karim Amer, Jehane Noujaim
Roteiro: Karim Amer, Erin Barnett, Pedro Kos
Duração: 113 min.
Nota: X ☆☆☆☆☆☆☆☆☆☆

Cuidado! Você está sendo manipulado!

Com a chegada da internet e a criação das redes sociais, a humanidade mudou. Novas conexões se formaram, novas posturas foram tomadas, criou-se um novo jeito de interagir e se posicionar no mundo. A entrega ao digital foi intensa e não encontrou barreiras. Para estar mais por dentro de tudo, até de si mesmo, os usuários clicavam em qualquer solicitação de acesso a seus dados pessoais. Muitas vezes, nem liam, pois era só mais uma permissão, e apertavam o “i agree” sem saber o valor daquilo, sem saber que eram suas vidas – preferências, gostos, ideologia, posicionamento, perfil de consumo, rede de amigos, família – que estavam passando a ser propriedade de desconhecidos.

Privacidade Hackeada, documentário distribuído pela Netflix, expõe, de maneira graficamente muito interessante, esse “entregar-se de olhos fechados” àquilo que maravilhara o mundo. Dirigido por Karim Amer e Jehane Noujaim, o filme chama a atenção para o valor dos dados pessoais, esses que agora não pertencem mais ao dono, e de como isso pode ser manipulado para se conseguir coisas improváveis.

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Existe um mapeamento tão preciso de cada pessoa, que todo o conteúdo ofertado é exclusivo e pessoal. Já seria assustador se fosse utilizado para a publicidade visando o consumo (e é usado, muito), mas fica ainda pior quando esse conhecer profundamente cria peças para o convencer a fazer algo que não estava na sua cabeça, ou seja, a manipulação simples e pura que ameaça a democracia em todo o mundo. Quem tem os dados sabe o que é necessário para criar o ódio, o medo e a divisão e, assim, realizar o seu plano de dominação. Pode até parecer coisa de filme de espionagem, um livro de ficção científica ou um episódio de Black Mirror, mas é real e aconteceu – ainda acontece – nesse nosso mundo, nos dias de hoje.

Quem guia o espectador é David Carroll, professor da Parson School of Design. Analista de mídias sociais e desenvolvedor de aplicativos, ele expõe a facilidade com que a manipulação acontece neste universo de dados de trilhões de dólares, onde cada passo da vida digital de uma pessoa é armazenado. A história que ele conta é a da eleição de 2016 nos Estados Unidos, o que, como já é sabido por todos, chega ao Projeto Alamo e à Cambridge Analytica (CA), o cérebro por trás da campanha que usava as principais redes sociais para alcançar seu eleitorado.

Privacidade Hackeada faz um histórico da ascensão da CA no mercado eleitoral, principal investimento de seu CEO Alexandre Nix. Sai de seu primeiro uso com Barack Obama, passa pelo protótipo de uma nova maneira de atuação com a reviravolta de Ted Cruz nas primárias, e chega à eleição inesperada e improvável de Donald Trump na presidência. O filme demonstra parte do material utilizado para influenciar principalmente aqueles que não tinham um voto previamente decidido, ou aqueles que nem sabiam se sairiam de casa para votar. Um método que pode ser facilmente reconhecido em qualquer país que tenha passado por eleições de lá até aqui.

O filme, agora seguindo a pesquisa de Carole Cadwalladr, jornalista investigativa do The Guardian, chega ao Brexit e à mais assustadora figura por trás de toda essa história: Steve Bannon. Especialista em comunicação, ele foi o chefe de campanha do Trump, o vice-presidente da CA e tem sua concepção própria de como destruir e remodelar a sociedade do seu jeito. Ou seja, uma espécie de Joseph Goebbels com internet e alcance mundial.

Outras pessoas que participaram da criação da máquina de propaganda Cambridge Analytica também são ouvidas, como Christopher Wylie e Brittany Kaiser, tanto em entrevistas para o próprio filme quanto nos depoimentos à comissão europeia recuperados. Os depoimentos de Wylie levam ao método, que evidencia o roubo de dados – quando dados de pessoas que sequer entraram no aplicativo fossem gravados porque algum de seus amigos aceitou os termos para fazer um teste de personalidade; o de Brittany no modo como se deu a propagação.

O longa passa por várias outras realidades nacionais afetadas pelo método de dominação pela divisão e medo que levam a apatia, como defendido por Bannon. Várias das táticas são facilmente reconhecíveis em países que acabaram de passar por essa intervenção, como nas últimas eleições do Brasil, principalmente na criação de fake news e sua propagação pelas redes sociais. E isso é sentido independentemente da inclinação ideológica ou posicionamento político de quem o assiste.

O documentário Privacidade Hackeada investe num visual atraente e num ritmo que facilita o envolvimento, mas resvala aqui e ali na repetição e no didatismo. Apesar disto, tem em seu objeto explorado o ponto mais alto e apavora pela irreversibilidade de uma situação que é universal. Sem saber das fontes e das intenções, não há como se saber o que é realmente que está por trás daquilo que se vê.

Estamos todos sujeitos a “sugestões” indesejadas que nos levam a fazer algo que não estávamos realmente pensando em fazer. É como se não fôssemos mais donos de nossas personalidades ou vontades, como se todos estivéssemos entregues a um grupo que sabe absolutamente tudo sobre nós e pode fazer o que bem entender com essas informações.

Um Grande Momento:
Chris Wylie explica o método.

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IMDb

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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