Crítica | Streaming e VoD

O Festival dos Trovadores

A dor de seguir sem saber

(Asiklar Bayrami, TUR, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Özcan Alper
  • Roteiro: Özcan Alper
  • Elenco: Kivanç Tatlitug, Settar Tanriögen, Erkan Can, Çinar Babiz, Erkan Bektas, Burcu Cavrar, Laçin Ceylan
  • Duração: 100 minutos

Eu consigo ler o que está se passando na cabeça do protagonista de O Festival dos Trovadores durante toda sua duração, porque eu já vivi aquilo. Estreia de hoje da Netflix, a nova produção turca do streaming é outro acerto do país que mês passado nos entregou o belíssimo Na Sinfonia do Coração. Aqui, a relação entre um pai e um filho não será revista, mas um novo e derradeiro encontro entre eles precisa acontecer para que as coisas não mudem nada de maneira efetiva, mas completamente mudem da maneira emocional. Yusuf e seu pai, Ali, não sabem como precisam um do outro até se reencontrarem, em uma noite chuvosa, e não conseguirem mais se separar. 

Dirigido e adaptado do romance de Kemal Varol por Özcan Alper, o filme é um mergulho muito duro em traumas que praticamente todos nós temos com nossos laços familiares. Seja pai, mãe ou ambos, ninguém resolveu todos os demônios que a infância legou e que nasceram no que deveria ser o lar, doce lar. Aqui, as respostas não serão dadas e Yusuf em determinado momento percebe isso; porque então continuar naquela peregrinação por um afeto e por respostas que nunca serão como gostaríamos ou mereceríamos? Simplesmente por doer demais, pela necessidade dilacerante de arrancar uma dor tão profunda quanto antiga, ou por uma obrigação ancestral de estarmos ao lado eternamente daqueles que nos magoaram, mas também nos puseram no mundo. 

Um dos maiores méritos de O Festival dos Trovadores é prescindir dos diálogos, e entender através da construção de seus personagens, que nada do que for dito será suficiente, por mais que as intenções sejam na direção de concluir os traumas do passado. Ao colocar em cena dois personagens retraídos, que não conseguem conectar o passado um do outro, o filme sublinha o que está na vida real: nada disso passará, toda essa dor será eterna, assim como a palavra ‘pai’. Nos resta saber como lidar com cada uma dessas feridas e seguir em frente, sem tentar voltar atrás constantemente. Só temos controle na nossa vida do futuro, quando temos, então porque arrastar o passado pela vida afora?

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Econômico tanto em suas palavras quanto em sua ação, é tudo profundamente elegante em O Festival dos Trovadores, uma daqueles produções tão sucintas em que tudo está na atmosfera. Cada uma de suas cenas tem um significado e uma disposição, não diferentes mas complementares, para que nossa fragilidade seja também acessada para onde o filme quer nos levar. É um road-movie na acepção mais literal do termo, porque o destino de fato não tem qualquer importância, mesmo que seja ironicamente o título do filme. É a jornada, muito mais espiritual e particular, que irá mudar a paisagem psicológica do filme, que acaba refletindo também a ambientação geográfica e metereológica da produção. 

Ao mesmo tempo solar e nublado, com seus rasgos de tempestade quando a catarse física é muito forte, o filme não se alimenta de uma emoção vazia e simplificada. São anos de repressão emocional que não conseguem ser extravasados de muitas formas que não em rompantes momentâneos, e que precisam desse lugar de reconfiguração. Yusuf conviveu apenas com o Ali Caprichoso, o codinome artístico do pai, uma figura lendária em sua arte; o pai nunca existiu, e essa viagem serve para que a partir dos esbarrões da estrada, filho e pai observem a vida a partir do olhar dos outros. As respostas definitivamente não virão, e seguiremos nos perguntando “porque essas pessoas que não se importaram conosco nos afetam tanto, mesmo depois de tantos anos”. Também para isso as respostas não virão. 

Alper evita todo tipo de emoção fácil e consegue com isso entregar um filme adulto e não uma produção falsa hollywoodiana sobre perdão e reencontro. Não há uma coisa ou outra em O Festival dos Trovadores, porque seu diretor compreende que algumas mágoas (ou quase todas) não passam, apenas devem ser deixadas afastadas da nossa realidade. O encontro entre Kivanç Tatlitug e Settar Tanriögen é também responsável pela nossa conexão com o filme, porque tudo que precisamos saber do emocional daqueles homens estão além das palavras, mas nos olhos deles, nas mãos, no toque que não vem, no pesadelo durante os trovões, na foto que sabemos que encerrará o filme. Não é sobre saber, mas sobre amadurecer em torno do que nunca saberemos – e deixar partir. 

Um grande momento

Existe justiça no mundo?

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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2 Comentários
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Leticia
Leticia
13/09/2022 01:21

La crítica más coherente, mejor redactada y explicada que he encontrado. ¿Sabés Francisco, que los que hacen reseñas sobre cine en Turquía y la mayoría de sus lectores, nunca entendieron nada de todo esto? Me cuesta creer que sean incapaces de ver más allá, en lo profundo de los personajes, pero desgraciadamente, es así. Claman por respuestas, tal como Yusuf. No comprenden que éste no las tuvo y que tampoco eran lo importante. Conocerse, descubrirse… Eso es lo importante. Una película en la cual los silencios gritan. Dos actores que no necesitan hablar. Un director que la tiene muy clara. Un escritor que fue co-guionista junto al director. Siempre digo que la clave del cine turco radica en “la profundidad de su simpleza”. También, me gustó mucho “La canción del corazón”.

Sylvia Lis Cardoso
Sylvia Lis Cardoso
12/09/2022 02:24

O filme é tão maravilhoso que não tenho palavras par expressar. Mas o crítico Francisco Carbone colocou em palavras todos os sentimentos que me afloraram nessa sofrida viagem de belíssimas paisagens e drama interior que fiz com Ali o Caprichoso e seu filho Yusuf.
Grandes atores! Excelente direção!

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