Crítica | Outras metragens

O Vampiro que Pensa Vozes

Cinema escroto, sim senhor!

(O Vampiro que Pensa Vozes , BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Paulinho Sacramento
  • Roteiro: Paulinho Sacramento
  • Elenco: Marcelo Mac, Babu Santana
  • Duração: 14 minutos

Paulinho Sacramento se apresentou no palco da Mostra Tiradentes de maneira despojada e eloquente. De alguma maneira, ali já foi traduzido o percurso de O Vampiro que Pensa Vozes, curta metragem em cartaz na seção Panorama. São muitas homenagens, inspirações e dedicatórias audiovisuais feitas pelo cineasta carioca, com ímpeto de combate. O cinema de guerrilha, como feito por Sacramento, tende a fazer surgir uma qualidade rara em torno da criatividade e das possibilidades diante da inexistência de recursos. O aroma que sentimos dessa experiência é o que se espera da mostra mineira como um todo, de onde experimentações constroem muito da base do que é selecionado para cá e criaram suas características. 

O filme se arvora por essa tradição marginal do nosso cinema, avançando sobre a tela como um bicho selvagem. É uma ferocidade desafiadora, que revela não apenas seu realizador em cena como também as raízes do cinema que ele tenta acarinhar. As próprias imagens que o filme sampleia, de Blácula ao videoclipe Thriller de Michael Jackson, compõem uma paisagem visual para a produção que a coloca em lugar de pouca afinidade com outras filmografias já dispostas. Sacramento dessacraliza essas imagens para referendar as suas próprias, torná-las rejuvenescidas e potentes, sem tirar da atmosfera a essência marginal que é uma síntese aqui. Rapidamente, o filme está sancionado para uma espécie de delírio que organiza o material. 

Sem qualquer afeição ao que seria uma ditadura do bom gosto, O Vampiro que Pensa Vozes está nesse mesmo escopo de compreender as imagens de maneira menos aprisionada. Esse é definitivamente uma obra onde a concepção de liberdade de ideias e pensamento são aplicadas à risca, o que poderia até tirar a própria liberdade almejada, mas não é o que acontece aqui; o filme imaginado explode na tela com um carinho genuíno pela displicência, conquistando o espectador. Não é uma ideia aprisionadora de conceito, mas um número de malabarismo onde o artista pode cair (e eventualmente cairá), importando apenas a integração entre o que é pretendido e o que é visto, borrando as curvas que dividem essas duas intencionalidades. 

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Não há uma preocupação formal em não ser tosco em O Vampiro que Pensa Vozes, mas também não podemos definir a produção por um recorte dito sofisticado ao qual outras produções tendem a acessar. O que é deglutido por Sacramento, e a forma sincera com a qual monta essa colagem de reflexões, é uma resposta a esse movimento – não à toa, a produção se autodenomina como “filme escroto”, sobrando provocação e debate a partir dessa alcunha. São sintomas de uma cutucada sintomática em que faz seu autor, que não se interessa somente em mostrar suas habilidades de reprodução, como também sublinhar um lugar de interesse para o filme que se apresente tanto em imagem quanto em narrativa. 

O filme segue esse homem amargurado, que é um vampiro dândi e preto, a caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro enquanto rememora sua relação com um analista (vivido por Babu Santana). Esse homem segue por entre transeuntes como Jorge, O Bandido da Luz Vermelha, mas aqui o tal vampiro tenta entender seu lugar de exceção. Preto e rechaçado como tal, e também ele uma vítima, sua resposta não é perseguir excluídos como ele, mas acessar seu material psicológico para entender como, mesmo metaforicamente, ele ainda assim é perseguido e tem suas capacidades diminuídas. O Vampiro que Pensa Vozes é, acima de tudo, um petardo político que pretende ecoar suas dificuldades para se mostrar igualmente fragilizado com nosso atual estado. 

O Vampiro que Pensa Vozes ainda pode ser pensado em contexto afro-diaspórico, como uma obra que analisa as ausências do povo preto ao longo dos tempos, impedido inclusive de refletir sobre sua própria existência, e tendo uma de suas principais referências (a capacidade de fabulação) preteridas em prol da branquitude. Quando pega para dialogar consigo clássicos do blaxploitation e um artista que foi se enclausurando na perda das suas raízes de cor, Sacramento volta a celebrar movimentos rechaçados e figuras marginais que nunca deixaram de ser referência ao cânone afro, mesmo que em resistência. Um dos filmes de maior número de camadas que veremos em Tiradentes esse ano, creio. 

Um grande momento

A legendagem de Thriller

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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