- Gênero: Documentário, Experimental
- Direção: Bruno Safadi, Ricardo Pretti
- Roteiro: Bruno Safadi, Ricardo Pretti
- Elenco: Leandra Leal, Mariana Ximenes
- Duração: 80 minutos
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A Mostra de Cinema de Tiradentes nunca deixou de trabalhar com a coragem, de revelar cineastas da novíssima geração (ou de olhar para além da expectativa até), ou de ressignificar carreiras, mais jovens e principalmente mais velhas. Filme de abertura do último Festival Ecrã, Para Lota está na Mostra Autorias aqui em Tiradentes, e faz todo sentido ele estar aqui. Bruno Safadi foi o primeiro vencedor da Aurora, ou seja, o primeiro diretor vencedor de um prêmio competitivo por aqui, com Meu Nome é Dindi. Esse filme ainda é sua marca registrada, e foi a porta de entrada para uma carreira consolidada no risco, mas que foi se abrindo para um lugar também de aproximação popular – inacreditável que Sofá, que já tem seis anos, e seja protagonizado por Ingrid Guimarães e Chay Suede, não tinha sido lançado.
Mas Para Lota é especial, no sentido de que ele retoma um risco que Safadi retoma, após sua trilogia Operação Sonia Silk. E por todos os dados que o filme carrega junto a si, o diretor mostra que sua capacidade inventiva e sua maneira de dobrar a estética em nome de uma proposta, continua ativa. Exatamente no momento em que lança Vítimas do Dia (estreia na Globoplay), sua porção autoral tem um reacendimento com essa visão muito cálida a respeito de Lota de Macedo, uma das mais importantes arquitetas e urbanistas do século, a idealizadora do Aterro do Flamengo, que teve um injusto fim perto do que realizou. Safadi monta um carinhoso retrato de um momento crucial da sua carreira, desenvolvido, de alguma maneira, pela própria.
No auge da pandemia, Safadi e Ricardo Pretti, co-diretor aqui, decidiram realizar um filme; diante de tantas restrições, práticas e psicológicas, entende-se como uma espécie de salvação. Saíram filmando ruas aleatórias, planos vagos de ruas desertas, até chegarem no Aterro do Flamengo, espaço urbano no Rio de Janeiro de beleza incontestável, mas que há muitos anos se encontra entregue a diferentes tipos de violência. Após conseguir um plano contínuo dos arredores do parque, o que fazer com aquelas imagens tão perturbadoras? Em tese, estamos diante de um plano estático que vasculha todo o Aterro, onde o espectador procura dentro das imagens as imagens que parecem saltar delas, do seu perigo que ultrapassa o físico e alcança um outro campo de absorção.
Ao conectar tais imagens à narração de Leandra Leal como uma espécie de Lota fantasmagórica, que rememora suas cartas endereçadas a Carlos Lacerda a respeito das ideias para o parque, suas obras e as eventuais mágoas, brigas e melancolia que avassalou a artista, Para Lota vai além de ganhar sentido e vida. Ele transforma-se por completo, ao conferir reconhecimento ao nome de quem realmente planejou tal projeto, se afirma como uma experiência cinematográfica que prova-se nas raias da exasperação, como um objeto não-identificado mesmo dentro da obra de Safadi e Pretti. O segundo, egresso do grupo Alumbramento e parte do coletivo de diretores que conceberam, por exemplo, Estrada para Ythaca (também um vencedor da Aurora), é um profissional de igual sensibilidade para perceber que um filme sobre alguém que se foi, também é uma produção sobre os rastros desse mesmo alguém, o que ele deixou de físico dentro de um mundo metafísico.
Quando todos os componentes começam a fazer sentido, e Lota passa a exercer uma presença audiovisual, por sua voz (de Leandra) e por suas imagens (de arquivo), o conhecimento do espectador tem a ver com sua ausência. E com a ausência de uma protagonista que clama não apenas reconhecimento – tardio – mas igualmente reparação por tudo o que faz. As trocas de cartas entre Lota e Carlos Lacerda (ou o envio vazio das súplicas da arquiteta) mostram muitas fantasmagorias que passam pela própria personagem, mas igualmente pelo modo como foi tratada e que evidentemente se enquadra como machismo, misoginia e uma série de outros fantasmas femininos que lidam diretamente com o apagamento de suas imagens. Mais uma vez, Safadi e Pretti acertam ao não enquadrar planos de sua figura central, e manter entre as certezas seu desaparecimento, que é questionado por ela mesma, num jogo representativo dos mais instigantes.
A própria fantasia do qual parte Para Lota é o do momento onde tudo isso começou e as motivações que exerceram sobre uma produção do qual se extrai alguma desesperança e um medo palpável do desconhecido. A sensação de vazio que tais imagens promovem e o pavor diante do inesperado, acabam por criar no espectador uma sensação constante provocada por uma série de perdas, e que está na gênese do projeto, mas também aciona gatilhos de cada um de maneira diversa. É no balé das imagens conseguidas, e na voz precisa de Leandra, que essa obra alcança notas não-imaginadas, a respeito de perdas estridentes e apartadas pelo tempo, mas igualmente poderosas em sua comunicação coletiva, e nas possibilidades de abrir campo a um desconhecido também para o futuro.
Um grande momento
A primeira carta