Crítica | Cinema

Pinóquio

Novas formas para um clássico

(Pinocchio, EUA, MEX, FRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Animação
  • Direção: Guillermo Del Toro, Mark Gustafson
  • Roteiro: Guillermo Del Toro, Patrick McHale, Matthew Robbins
  • Elenco: Ewan McGregor, David Bradley, Christoph Waltz, Gregory Mann, Tilda Swinton, Ron Perlman, John Turturro, Finn Wolfhard, Tim Blake Nelson, Burn Gorman, Cate Blanchett
  • Duração: 115 minutos

Ao redor de um personagem icônico poderíamos elaborar quantos novos desdobramentos, quando sua história já foi escarafunchada tantas vezes, tão retificada e rememorada que seria difícil demonstrar a novidade, tanto metaforicamente quanto narrativamente. Mas agregar abrangentes terrenos de sua fabulação, conectando passagens históricas a um mundo já apresentado, é uma forma de substituir uma roupagem já vista por um cuidado em revisitação da História. Reescrevendo e costurando passagens de um tempo doloroso para dentro de uma atmosfera de sonho, a tarefa de Guillermo Del Toro em revisitar o pequeno menino de madeira que queria ser amado por todos não era fácil, apesar do reconhecido talento e da moldura reconhecida por sua filmografia.

Alguns personagens parecem não sair de moda em Hollywood e adjacências. Tem os tipos do cinema de horror, como Michael Myers, Ghostface, Freddy Krueger e Jason Voorhees, que não nos dão descanso em tantas reimaginações. Fora desse lugar, os tipos literários são ainda mais inexplicáveis; porque não podemos descansar de Peter Pan e Tarzan, entre outros? Nos últimos dois anos, no entanto, Carlo Collodi parece que voltou com força total aos cineastas em inúmeras releituras de sua maior criação. Mas nada havia nos preparado para a visão de Del Toro para Pinóquio, que a Netflix lança na plataforma mês que vem, mas os cinemas já trouxeram para nós; não sei se precisaremos voltar à nova encarnação de uma história que, enfim, se monta como definitiva.

Del Toro carrega esses personagens para dentro de sua obra, se apropria de suas ideias sem deixar de realçar tal narrativa, mas sob seu olhar, já reside uma nova perspectiva. É fácil identificar onde estaria a obra de Collodi dentro de seu universo, com a determinação da eterna contação de histórias, sempre pronunciada na cinematografia. Com astúcia, o autor de A Forma da Água nos reconecta com os valores universais apresentados em Pinóquio nos levando para uma viagem ainda mais completa. Como bem se sabe, fábulas também são formas de apresentar ao contemporâneo ideias eternas sob um efeito moral. Ao passear por essa releitura sobre a ambição desmedida em busca do reconhecimento, o diretor enxerta também nela situações de comunicação direta tanto com a ideia original quanto com sua própria obra. 

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Pinóquio, de Guillermo Del Toro
Netflix

Uma criatura consumida pelo orgulho e uma ganância tão essenciais, que percebe que todas as nossas escolhas têm consequências, e que a vida inconsequente tem preços a serem pagos. Nada disso é novo em Pinóquio, mas o que se revela para essa versão é o que Del Toro nos fornece de arrebatador. Tais como uma discussão sobre a perenidade da arte, que se entrelaça ao conceito do que Collodi concebeu; o corpo de Pinóquio é a arte pura que, explorada, se transforma em objeto – porém é eterno. Intrinsecamente ligado a isso, vemos uma ideia espiritualista do ciclo da vida sendo erguido em cena. São duas vertentes que, sozinhas, já demandam um imenso debate, e juntas engrandecem ainda mais uma obra plural.

Essa ideia de ter um oráculo como uma terceira consciência para Pinóquio (além do indefectível Grilo Falante) funciona perfeitamente, porque é um dado que o menino de madeira lida através da imortalidade que julga ter. Por seu nascimento ser fruto de uma magia, Pinóquio acaba por se tornar imortal – o que na verdade é uma metaforização acerca da aceitação da perda constante. Aliás, Pinóquio é inteiramente um material regido pela aceitação também como uma forma de libertação, principalmente das diferenças. Nesse sentido, é primordial que essa versão se encerre como tal, obrigando o espectador a rever seus conceitos a respeito do que é um conceito amplo de felicidade, e do que é a natureza de cada indivíduo. 

Pinóquio, de Guillermo Del Toro
Netflix

É bonito observar como Del Toro reconfigura as imagens de sua trajetória em Pinóquio, ainda mais quando A Espinha do Diabo é uma referência explícita. Na inserção da guerra na narrativa, nos planos das bombas que explodem sobre as crianças da produção, há uma conexão com um dos primeiros filmes do diretor, saindo de um lugar da inocência de uma guerra de tinta, disputada de maneira onírica pela filme, até que os rifles de verdade ganham cena. Essa situação de conflito armado, e de um embate entre o futuro e o passado, o roteiro da produção leva o conflito de gerações para todas as relações do filme, não apenas entre Pinóquio e Gepeto. É o novo pedindo passagem em meio a um mundo arcaico que se vê desmoronando, e se agarrando aos últimos resquícios de permanência de ação. 

Não posso deixar de registrar um dos trabalhos mais inspirados de dublagem de animações recentes. Dotado de técnicas de stop motion muito rebuscadas, os trabalhos dos atores parecem se apossar de bonecos que tem um manancial de vida dentro de si. Em especial Christoph Waltz e David Bradley, respectivamente o Conde Volpe e o Gepeto, vêm de lugares muito orgânicos dentro do que se apropriam de uma persona muito palpável. A trilha sonora de Alexander Desplat fornece não apenas uma trilha tão bonita, quanto a composição de canções que realçam as muitas qualidades desse musical agridoce. 

É impressionante o quanto, além de todo um cabedal de referências, o nome de A. I. não tenha surgido ainda, quando Pinóquio também me parece celebrar esse feito. Ainda que o filme de Steven Spielberg tenha igualmente essa inspiração de Collodi assumida, o lugar principal onde essas duas obras se comunicam é no desfecho. É a tristeza que não se percebe presente diante da eternidade, é um jogo de aparências encontrado para manter a sanidade, é a ilusão de se manter o controle em um mundo que não nos pertence, que traduz o sentimento da finitude que, ironicamente, não tem fim. É um dos lugares mais melancólicos onde possivelmente alguém pode estar, aquele onde somos repetidamente lembrados de que nada mudará, para o bem ou para o mal. E para sempre. 

Um grande momento

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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