Crítica | Streaming e VoD

Cenas de Um Homicídio: Uma Família Vizinha

A urgência e a importância do documentário true crime

(American Murder: The Family Next Door, EUA, 2020)

  • Gênero: Documentário
  • Direção: Jenny Popplewell
  • Roteiro: Jenny Popplewell
  • Duração: 82 minutos
  • Nota:

Uma das grandes marcas da Netflix são seus documentários true crime, desde o sucesso inicial Making a Murderer até o brasileiro Bandidos na TV, ver em formato de filme ou seriado reconstituições factuais de crime através de arquivos e documentos tornou-se um filão à parte. E dentro desse ínterim, as produções cobrem desde casos já icônicos, como Conversando com um Serial Killer: Ted Bundy, até crimes de impacto recente, como é o caso deste Cenas de Um Homicídio: Uma Família Vizinha, uma nova incursão no gênero “lobo atrás da porta”.

O subtítulo The Family Next Door, ou Uma Família Vizinha, ressalta desde o primeiro minuto esse caráter de como algo extraordinário está acontecendo a partir de algo prosaico. Em uma tristie imitação da arte pela vida, os primeiros minutos do documentário de Jenny Popplewell lembram bastante o romance de Gillian Flynn tornado filme de David Fincher Garota Exemplar, quando a executiva e mãe Shanan Watts desaparece com as filhas de um dia para o outro enquanto seu marido, Christopher, chega aturdido do trabalho. Com essa construção, o filme é interessantemente confuso desde os primeiros minutos.

Cenas de um homicídio: Uma Família Vizinha

Nesse momento, o filme também já delineia de maneira eficiente sua proposta: tudo é narrado a partir das imagens da polícia e de imagens compartilhadas virtualmente em redes sociais, e mesmo que os eventos já tenham acontecido há dois anos, a dispensa absoluta de depoimentos por entrevistas conferem um senso de presentificação e urgência. Acompanhar o desdobramento não carrega peso dos depoentes, mas choque da revelação. Tudo arquitetado com a linguagem do thriller, inclusive o uso de intertítulos que implementam dinamismo e tensão. 

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Curioso que, incidentalmente, a questão do dispositivo alcance um caráter dualista; as câmeras de celulares e os vídeos de redes sociais sejam uma verdadeira “máscara”, miscelânea de momentos felizes frequentemente “rachados” pelas trocas de mensagens entre Shannan e Christopher ou amigas, que demonstram as crescentes imperfeições, brigas e, eventualmente, o lado sombrio do marido; é aí que entramos no “lado feio”, as câmera de segurança, onde descobrimos as mentiras, a vida dupla e o eventual crime que chocou a nação. 

Cenas de um homicídio: Uma Família Vizinha

Essa questão de vidas desconhecidas de pessoas que moram próximas, ainda que não seja explorada ao máximo, é interessante não apenas pela alternância do dispositivo, mas também porque sua montagem é baseada em contradições; não se acostume com a propaganda de vida feliz, pois você fatalmente ficará desapontado. O controle que Christopher demonstra na frente das câmeras virtuais e televisivas não demoram a colapsar frente às câmeras de segurança, e a narrativa trata isso com inteligência. Com isso, nunca soa esquemático ao mostrar o quão longe seu vizinho aparentemente normal pode ir.

Ao mesmo tempo, é uma pena que uma vez chegando lá, Cenas de um Homicídio comece a avançar de maneira tão rápida e nervosa que ocasionalmente tropece. O clima de investigação procedural chega ao seu clímax na descoberta, mas não procura investigar essa nova camada muito além disso. Tudo o que desconfiávamos sobre Christopher Watts, quando se consolida, não gera um novo filme, a partir do primeiro. O atrativo principal é sua reconstrução, com o final acabando sem muitos desdobramentos, em cima da marca do pênalti. As legendas finais, que procuram ressaltar o problema social da misoginia, perde um tanto impacto justamente pela falta de fundamentação encontrada.

Cenas de um homicídio: Uma Família Vizinha

E com isso, o final soa insatisfatório, pois tudo parece incompleto. Entendemos o que aconteceu, mas não a razão. Sabemos a forma que Shannan sofreu nas últimas semanas e meses antes do seu desaparecimento e  como o casamento feliz ruiu com o passar dos anos. Mesmo o elemento de reviravolta, o da amante, não recebe um grande tratamento, logo voltando ao conflito central. Christopher admitirá eventualmente, mas seu caráter fica parecendo um grande enigma, já que apesar do relacionamento em crise, nenhum outro sinal denunciava tamanha tragédia.

Porém, mesmo que o roteiro da narrativa seja exclusivamente dependente da sua revelação, é aí que também reside sua maior força; o roteiro, ao não revelar o que foi o homicídio da família Watts de imediato, reconstituindo a partir daí, faz o mistério do desaparecimento de Shannan e as duas filhas atravessar o filme feito uma flecha. E mesmo que o final seja quase didático nesse sentido, sua construção já antecipava o quão pouco sabemos sobre infernos cotidianos de cada um que o filme consegue montar como um quebra-cabeça (literalmente nos seus últimos minutos, que liga todos os pontos levantados).

Cenas de um homicídio: Uma Família Vizinha

Essa nova adição ao gênero “suspense da casa ao lado” certamente não tem a mesma consciência e maturidade narrativa de um I’ll Be Gone in The Dark ou Na Captura dos Friedmans, e é nítido que ainda é um projeto de início da carreira da direita, que apressa um tanto a entrega e eventualmente sem muita paciência para analisar desdobramentos como os supracitados projetos de documentaristas mais experientes como Liz Garbus e Andrew Jarecki. Ainda assim, pode-se dizer que o coração de Cenas de Um Homicídio: Uma Família Vizinha está no lugar certo, pois sua relevância social, mesmo que escrita palavra por palavra, já era ressonante e autêntica desde os viscerais e excelentes primeiros minutos.  

Um grande momento
A primeira sequência, filmada por um policial e pontuado chamadas de voz aflitas

Ver “Cenas de um Homicídio: Uma Família Vizinha” na Netflix

Bernardo Brum

Jornalista formado no Centro Universitário Carioca. Roteirista pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Crítico de cinema desde 2009 e podcaster desde 2015. Cinéfilo iniciado por Laranja Mecânica e Noivo Neurótico, Noiva Nervosa.
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