Crítica | Festival

Olhar de Cinema 2022: Mãe só há todas

Os Laços Que Unem, de Su Friedrich
(The Ties That Bind, Estados Unidos, 1985)
Retrospective

Não Posso te Dizer como me Sinto, de Su Friedrich
(I Cannot Tell You How I Feel, Estados Unidos, 2017)
Retrospective


O Olhar Retrospectivo deste ano, no Olhar de Cinema 2022, apresenta ao público brasileiro a obra de uma realizadora norte-americana ainda não exibida ou difundida anteriormente no Brasil, Su Friedrich. Expoente de uma cena experimental lésbica no cinema contemporâneo e com boa parte de sua filmografia em cartaz em Curitiba, a diretora está em plena atividade como artista, e a mostra uniu em díptico um par de títulos de sua autoria, cuja conversa é essencial a ambos. Separados no tempo por 32 anos, ‘Os Laços que Unem’ e ‘Não Posso Te Dizer como me Sinto’ flagram a realidade familiar da autora em seu lugar mais íntimo. São filmes que se comunicam a ponto de não conseguirem ser observados de outra forma que não nesse campo de dualidade, porque encontram e reencontram os reflexos do tempo em um relato que deflagram as camadas de humanidade de si mesma, e do seu olhar para a História humana. 

Apoie o Cenas

Em 1984, Friedrich fez uma série de perguntas (talvez até em maior volume do que deveria) para sua mãe Lore, então com 60 anos. Sobrevivente alemã dos horrores vivenciados durante a Segunda Guerra Mundial, Lore tem um olhar particularizado para essa fatia da humanidade no qual participou ativamente, como testemunha ocular do estado de coisas daquele tempo, in loco. Ela e seu núcleo familiar fazem parte de um segmento da população contra o nazismo e os inúmeros crimes cometidos entre 1939 e 1945, e em sua bolha própria, teve a adolescência afetada diretamente por tais questões. Estudante de um colégio que privilegiava a juventude nazista, seu olhar recriminatório construíram um histórico de perseguição a si e sua família, do qual ela levemente se culpa. A clareza da identificação de seus relatos, ainda que separados por mais de 35 anos no tempo de seus eventos, nos faz criar um tal laço com seus sentimentos, além de identificar ecos daquele momento com o que nos trouxe de volta a ascensão da extrema direita. 

Os Laços que Unem, 1985

Causa ainda mais espanto reencontrar Lore 32 anos depois, e assistir nela os efeitos do tempo, implacáveis e cruéis. Depois de mais de 50 anos morando em Chicago, seus três filhos resolvem que Nova York é mais apropriado para a agora nonagenária, estando inclusive mais perto dos filhos. O choque dessa sessão conjunta é imediato do plano inicial, onde a protagonista declara o título do filme, e no qual se baseia uma linha de pensamento narrativo – não apenas Lore não consegue muito bem dizer o que sente, assim como é corajoso a Su admitir os próprios pensamentos a respeito de tudo. A identificação do crítico é imediata com a própria história, mas a autora nos faz remeter ao coletivo na reta final de seu filme; iremos todos chegar até ali, e isso é ainda mais assustador. Só há uma maneira de enfrentar a velhice, e a namorada de Su define como ‘um encontro entre gangues de traficantes rivais’ como uma boa saída. O fim não precisa ser trágico, mas ele não é necessariamente alvo de uma ânsia positiva. 

Em ‘Os Laços que Unem’, a mão autoral da diretora está mais salientada, com a montagem espaço-temporal marcando uma escolha de sua diegese, e realizando um gesto de realização efetivo. As cartelas de questões que cortam a narrativa, substituindo sua voz pela doutrina de seu interesse artístico, é uma forma de estabelecer contato direto com o objeto filmado sem a alça parental. Ainda que essa escolha esteja presente em cena por mais tempo que o necessário, não é apenas um penduricalho estético, mas uma decisão que demarca sua posição como autora em justaposição com seu laço sanguíneo. Essa demarcação inexiste no média metragem mais recente, que se salienta como um registro observacional sem distanciamento, o que demarca não apenas uma mudança na artista, mas principalmente na natureza dos projetos. 

Não Posso te Dizer como me Sinto, 2017

A partir do momento onde essa dualidade de projetos é refletida, não apenas pela curadoria de seu festival como pela intencionalidade de sua autora, aí sim as possibilidades de ‘Não Posso te Dizer como me Sinto’ extrapolam. São feitas conexões obrigatórias entre a mulher que Lore foi e a pálida imagem que hoje representa, suas novas conexões e tudo que efetivamente perdeu, entre memória, ilusão, realidade e a perda do concreto. Das intersecções criadas por sua filha, que sublinha a narrativa com comentários espirituosos, até verdadeiramente engraçados no impacto, mas absolutamente devastadores, quando a consciência do estado vêm a tona. É a realidade que bate na porta de maneira irrefreável, e muito mais veloz do que imaginamos, que dirá desejamos.

Essa comunicação, com as três décadas que separam as duas produções, agora parece inevitável. São limites muito pouco condicionados a suas narrativas, que não se desconectam a partir do momento que conhecemos Lore. Como se tudo fizesse parte da mesma experiência, que é potencializada com muito mais ênfase a partir do momento em que o segundo título foi lançado. É um fascínio a respeito do que um título tem de cinematográfico e o seguinte tem de físico, onde a junção de ambos se congregam para sintonizar questões pessoais, particulares e muito doloridas, a respeito do amor que doamos, aos outros e próprio. Não é simples nem é fácil de representar, embora Su pareça dedicar pouco esforço em construir e expor a relação com sua mãe, com sua história e com os sentimentos obscuros que nascem do desgaste com nossas vivências. 

Um grande momento

Os Laços que Unem – O choro da mãe ao lembrar do Holocausto
Não Posso te Dizer como me Sinto – A conclusão de Su

[11º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Cinema]

Curte as críticas do Cenas? Apoie o site!

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo