Crítica | FestivalMostra de Tiradentes

Tragam-me a Cabeça de Carmem M.

(Tragam-me a Cabeça de Carmem M., BRA, 2019)
Experimental
Direção: Felipe Bragança, Catarina Wallenstein
Elenco: Catarina Wallenstein, Helena Ignez, Marcos Sacramento, Higor Campagnaro, Luis Alberto Montenegro, Priscila Lima
Roteiro: Felipe Bragança, Catarina Wallenstein
Duração: 60 min.
Nota: 4 ★★★★☆☆☆☆☆☆

O Brasil passa hoje por uma ruptura com valores que levaram anos para serem desenvolvidos, com direitos que demoraram mais do que deveriam para serem afirmados. Toda uma movimentação pela criação de um inimigo comum e pelo rechaçamento do status quo culminaram na escolha pela pior opção. Inimaginada pelos que começaram a movimentação pela ruptura, desacreditada por quem comprou a ideia, o que existe hoje é o medo para muitos grupos e a insegurança de todos pelo futuro.

Seguindo o fluxo circular da história, a busca pelo passado acaba sendo natural em momentos de tentativa de compreensão. Para entender o presente e prever o que virá pela frente, o olhar é para o passado e ele pode ser feito de muitas formas diferentes. Em Tragam-me a Cabeça de Carmem M., de Felipe Bragança e Catarina Wallenstein, o caminho é a recuperação de um ícone: Carmem Miranda.

A atriz foi, nos anos 1940, uma das mais famosas artistas estrangeiras em Hollywood. Portuguesa de nascença, veio para o Brasil ainda menina e aqui começou sua carreira. O resgate se encontra no percorrer do caminho pelas ruas cariocas de uma outra atriz – vivida pela diretora Wallenstein – na busca de compreendê-la para representá-la.

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É nesse transitar que criadora (Wallenstein) e criatura (Miranda) se confrontam e complementam. Assim como sua personagem, a atriz é portuguesa e é devorada pelo Rio de Janeiro. Entre ensaios, encontros e seus relacionamentos mais íntimos, a construção vai se concretizando, junto com a imagem que precisa ser alcançada.

Porém, a figura, complexa e múltipla em si, é difícil de ser alcançada em sua totalidade, assim como sua inserção em um universo que também carece de compreensão. O que se tem é a construção numa espécie de vazio, pois há sempre a desvalorização da história neste Brasil feito de “esquecimento, medo e bagunça”. E o discurso contraria a execução. A busca por imagens, em corpos e personas, acaba encontrando dentro da tela representações equivocadas e carregadas de um peso que muito mais prejudica do que contribui. A Carmem que surge, é uma nova Carmem. Assim como a outra, ainda sufocada, mas por uma outra realidade, também contaminada por visões determinadas e preconceituosas.

Estilisticamente, o que se vê tem muito do cinema de Bragança, principalmente no manipular das imagens para a construção de sensações contraditórias. O acessar daquele universo é onírico e fabular, mas a um inesperado apego ao real chega com a parceria com Wallenstein. O visual se destaca, com o preto e branco que dão lugar ao brilho literal do dourado, o simples ato de preencher uma parede que acompanha a constituição da personagem ou o destaque consciente à Catarina Wallenstein.

A atriz, imensa, ocupa todo o espaço que tem, seja em momentos introspectivos ou na explosão da apresentação de “Sonho Juvenil”, na Lapa. Wallenstein magnetiza quem assiste ao filme e, por mais que esteja no foco da contradição, consegue, em momentos específicos, minimizar o incômodo.

Se a forma é bela e potente na figura da protagonista, ainda falando de forma, há excesso. Mesmo que seja um filme de apenas uma hora, a dilatação pode ser sentida em pausas longas demais, em repetições e no prolongamento de números. Mesmo que se note a intenção de organicizar tudo, ela nem sempre funciona.

Assim, Tragam-me a Cabeça de Carmem M. é um filme que parte de uma boa premissa, encontra um meio de existir seguro, mas se atrapalha no caminho que decide seguir, acertando em uns pontos e errando em outros. Não deixa de ser algo que, de algum modo, explica o lugar onde hoje estamos e o que fizemos, por tanto tempo, para chegar aqui.

Um Grande Momento:
“Recenseamento”.

[22ª Mostra de Tiradentes]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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