Crítica | Festival

Vicenta

Dores que paralisam

(Vicenta, ARG, 2020)
Nota  
  • Gênero: Animação, Documentário
  • Direção: Darío Doria
  • Roteiro: Luis Camardella, Darío Doria, Florencia Gattari
  • Duração: 69 minutos

Cada vez mais, a seara documental vem invadindo narrativas de outras texturas, e a animação têm sido um refúgio de renovação para que o gênero se amplifique ainda mais, com abordagens multifacetadas para assuntos muitas vezes espinhosos. Nesta edição do É Tudo Verdade, o impactante vencedor de Sundance Fuga já abrilhantou o subgênero, e agora esse Vicenta, de Darío Doria que estreou no último Festival de Mar Del Plata, reverbera outras questões que se potencializam com os bonecos moldados para contar essa história desumana e real acontecida há 15 anos, que acaba por lançar luz sobre questões do universo feminino prementes hoje.

Tecnicamente falando, o filme não pode ser exatamente chamado de animação, tendo em vista que suas imagens foram captadas com movimentações de câmera mas que os bonecos produzidos para a produção nunca se movem. Eles são filmados estaticamente, e isso não só agrega beleza ao projeto como camada de discussão e de observação àquelas imagens que são, a um só tempo, singelas e perturbadoras, pelo tanto de mágoa, desespero e desamparo que Doria consegue impingir aos seus planos. Sua compreensão espacial e seu zelo com sua protagonista são exemplares de suas intenções humanistas.

Vicenta

Há uma disposição em Vicenta à postura de seus personagens como um todo, e a sua protagonista em particular, cuja imobilidade indica acima de tudo prostração e conformação em relação ao sistema que a governa, a rodeia, a oprime e controla, as ações e desejos não somente suas, como também de toda uma fatia da sociedade. Vicente é pobre, empregada doméstica, analfabeta, está na parte mais inferior da pirâmide social e deve ter seus direitos constantemente negados no dia a dia, sem precisar de auxílio do Estado; quando enfim precisa, fica claro como sua situação será decidida à sua revelia, transformando-a num joguete indesejado.

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De ritmo contemplativo distribuído em imagens estáticas construídas para traduzir a lentidão das decisões político-sociais, elencadas na produção através da burocracia empreendida para cumprir um direito previsto em lei, mas óbvio que a lei é uma para os ricos e outra para os pobres, ainda que o filme trabalhe a ideia de que há uma tentativa de cumpri-la que é emperrada pelos podres poderes. Com isso, a câmera passeia por processos empilhados, por cenários silenciosos, por lugares vazios… as paisagens desérticas exibidas nos corredores das instituições refletem o silêncio das respostas às protagonistas, que precisam peregrinar em busca de uma ajuda que não vem.

Vicenta

O acontecimento real que deu origem ao filme ainda permite que as soluções políticas sejam exibidas na produção através dos noticiários assistidos ao longo da produção, e que tiram da narrativa sua falta de movimento, mas também elas servem pra realçar o quanto o produto final se encontra sem dinamismo, muitas vezes associando suas ideias ao mesmo desenrolar de imagens que se repetem em profusão; por mais que o efeito alcançado seja exatamente o pretendido e o filme verse sobre a morosidade da justiça no tratamento de pessoas à margem, o filme padece dessa cadência que desanda e atravanca o resultado da fruição.

Ainda assim, Vicenta tem um caráter tão singular em como apresentar sua matéria, e mesmo que a ideia de “animar” uma história documental já tenha sido utilizada com frequência cada vez maior, o sabor que Darío Doria consegue ao seu alerta sobre uma modalidade de machismo tão intrínseco que quase passa como preconceito social é de extrema relevância e refrescância, mesmo que seja uma ideia amarga e difícil de conseguir compreensão ou entender a falta de empatia. Com um olhar profundamente humano a partir de bonecos inanimados a questões tão dolorosas, o filme se conecta de forma delicada a dores devastadoras.

Um grande momento
Vicenta recebe lideranças femininas

[26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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