- Gênero: Comédia
- Direção: Janicza Bravo
- Roteiro: Janicza Bravo, Jeremy O. Harris
- Elenco: Taylour Paige, Riley Keough, Colman Domingo, Nicholas Braun, Ari'el Stachel, Jason Mitchell, TS Madison
- Duração: 86 minutos
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Em 2015, uma conta no Twitter publicou uma história dividida em 148 postagens (conhecida como thread) de como teria sido seu fim de semana. Isso é algo relativamente normal de acontecer na rede social, o que é fora do comum foi a qualidade dessa narrativa, tão surreal que se transformou em um artigo jornalístico e em sequência em Zola, lançamento da HBO Max depois de estourar nas bilheterias americanas – levando em consideração sua microscópica realização – e ser o campeão de indicações ao Independent Spirit deste ano, levando dois prêmios pra casa. A constatação é a de que, embora tenha nascido de maneira não-usual, o filme merece tudo que vêm acontecido com ele.
A diretora Janicza Bravo está em seu segundo longa, pegou a vaga que seria inicialmente de James Franco, e fez uma obra de rara importância. Zola me parece algo tão refrescante, tão pouco explorado, suas camadas são tão sutis de construção e de formatação, o lugar onde suas personagens estão são tão desprovidos de representação, que talvez nem precisasse que a mão de sua autora fosse tão presente. Bravo, no entanto, parece pular na jugular do espectador, oferecendo uma experiência sem muitos pares no cinema atual, por unir uma narrativa absolutamente sedutora habitada por personagens que não atendem aos padrões cinematográficos, aliado a uma capacidade de realização espantosa.
Nem mesmo As Golpistas, filme igualmente protagonizado por strippers, rivaliza aqui porque, apesar da excelência, o filme de Lorene Scafaria faz um caminho tradicional de autoralidade. O frescor presente aqui é daqueles tão acachapantes que não apenas o elevam, como também apontam uma crise de autorismo no tão prolífico cinema indie americano contemporâneo. Se já vimos surgir nesse escopo obras do quilate de Cães de Aluguel, Faça a Coisa Certa, sexo, mentiras e videotape, Quando Chega a Escuridão e tantos outros, e percebemos que há um predomínio narrativo hoje que enxuga a catarse que uma mise-en-scène menos clássica, Bravo surge com a capacidade de redefinir uma estética que se mostra amansada.
Seu filme fala a voz do imediato, a começar por onde foi capturar seu ponto de partida. Parte provavelmente daí a certeza de que não havia outra maneira de passear por essa aventura que não se juntando ao seu universo de origem. Sem exacerbar uma pretensa modernidade, o que Zola acaba por se tornar é, como a maioria dos filmes citados acima e de tantos outros, um retrato das inquietações do nosso tempo, carregando para a imagem essa ranhura social. Com bom gosto, sua inteligência cênica compreende em deixar livres tipos que não se pretendem exemplos de conduta, mas que existem e estão aí nas ruas, cada um em seu corre. Assim como Spike Lee percebia seu entorno e bradava junto a ele, Bravo sorve cada uma das reverberações das ruas e cospe de volta, com certa doçura.
Não há espaço para o afeto que sobrava no Tangerine do Sean Baker, por exemplo, mas há um sentimento de urgência, uma volúpia de conquistar material e conseguir respirar nos dias de hoje, onde faltam oportunidades e sobram espertos para ludibriar. No lugar do sentimento estrangeiro, o que fala mais alto é a autopreservação, é o amor próprio; em um mundo onde todos querem se dar bem, querer estar plena, feliz, realizada, bonita e bem sucedida é o maior dos sonhos. Nesse sentido, Zola é uma aula de auto consciência, do que podemos fazer por nós mesmos sem depender de ninguém – no fundo, esse é o lema de todos ali, que salta aos olhos quando na última cena um dos personagens é chamado de egoísta. Não é o que todos somos?
Chama a atenção de que nessa produção tão regada a empoderamento, nada disso tenha ficado apenas na teoria: todos os cargos principais técnicos são ocupados por mulheres, da fotografia arrebatadora de Ari Wegner (mais um acerto da brilhante profissional por trás de Ataque dos Cães) a montagem repleta de possibilidades concretizadas de Joi McMillon (indicada ao Oscar por Moonlight), passando por trabalhos impressionantes em figurino, direção de arte, som e trilha sonora (Mica Levi, de Jackie). É uma verdadeira demonstração do que é possível profissionais tão gabaritadas, em um filme que é também sobre empreendedorismo feminino.
Em um trabalho tão certeiro para o cinema em 2021 – e, creio, para o cinema no futuro – esse elenco se torna peça contribuinte para essa elevação. Taylour Paige e Colman Domingo (ambos de A Voz Suprema do Blues) estão soberbos em representações tão vívidas e repletas de contemporaneidade, enquanto Riley Keough (de American Honey) e Nicholas Braun (de As Vantagens de Ser Invisível) são absolutamente convincentes em seus lugares de representação mais aguda. São, acima de tudo, um grupo sábio do lugar representativo desse projeto, que poderia se contentar em ser uma gracinha divertida, e se traveste de uma qualidade cada vez menos encontrada no cinema de hoje, indie ou industrial: personalidade.
Um grande momento
Prece especial