O Vento Será Tua Herança (1999) é um longa-metragem baseado em fatos reais, que conta a história de Bertram T. Cates (Tom Everett Scott, de La La Land), um professor acusado de infringir o Decreto 31.428 do Código Estadual de Hillsboro, que proíbe professores de escolas públicas de ensinar teorias evolucionistas, ao invés de ensinar a criação do homem tal qual prescrito na Bíblia.
Após a acusação, as grandes figuras da cidade se reúnem para discutir o caso, dentre os quais estão o promotor de justiça, o prefeito e o reverendo, e todos brincam e caçoam dos ensinamentos do jovem professor, dizendo que o caso se trata de uma disputa entre Darwin e Jeová, e evidenciam o anseio de que o processo seja amplamente divulgado pela imprensa, a fim de dar visibilidade à cidade, e, ainda, garantir o reconhecimento dos ensinamentos bíblicos em detrimento da ciência.
Durante a reunião, o promotor da cidade, Tom Davenport (Brad Greenquist, de Cemitério Maldito), se anima ao saber que contará com o apoio do conhecido e renomado promotor de justiça Matthew Harrison Brady (George C. Scott, de Patton), no julgamento do professor, uma vez que este promotor é reconhecido por ser extremamente fiel aos dogmas cristãos e favorável à legislação que impeça os ensinamentos que contrariem a igreja.
Do lado de fora da reunião, a cidade age como se o professor já tivesse sido condenado e como se fosse um verdadeiro vilão, um herege que desrespeita os dogmas bíblicos, sem sequer lhe dar direito ao contraditório, a possibilidade de explicar porque se desapegou da igreja; nem mesmo tentar entender do que se tratam os ensinamentos darwinistas.
Lado outro, a cidade fica em polvorosa com a notícia de que Henry Drummond (Jack Lemmon, de Quanto Mais Quente Melhor) será o advogado de defesa do professor, porquanto este patrono é conhecido por ser ateu e favorável aos ensinamentos científicos e evolucionistas, logo, visto como mais um inimigo da pacata cidade de Hillsboro, embora o promotor Brady faça questão de destacar seu apreço e respeito ao advogado.
Uma vez iniciado o desenvolvimento da trama, fica evidente que a disputa na Corte não será especificamente do “povo contra Cates” (como se intitulam os processos norte-americanos), mas sim da religião contra a ciência, ou da legalidade contra a liberdade intelectual, o que se infere da conversa entre o promotor Tom e o Reverendo Jeremiah Brown (Lane Smith), ao início de O Vento Será Tua Herança, e dos sermões religiosos que o Reverendo faz à sociedade e à sua filha, Rachel Brown (Kathryn Morris), então noiva do professor Cates.
A discussão jurídica que o filme traz à tona, além da crítica ao cumprimento cego do princípio da legalidade, é especificamente sobre a intervenção da Igreja no Estado, que resulta em criação de normas legais fundadas em dogmas religiosos, ao invés de se fundarem no bem-estar social ou de garantirem plena liberdade religiosa aos indivíduos.
Como retratado em O Vento Será Tua Herança, a partir do momento em que se permite que a Igreja intervenha diretamente na política de um Estado, surge a possibilidade de criação de normas legais de cunho religioso, que, para a garantia de sua observância, punam os indivíduos que se recusem a acreditar ou professar a fé da forma tal qual descrita na lei.
Neste sentido, a única consequência que tais leis religiosas podem gerar é o engessamento do pensamento crítico e o cerceamento da liberdade de pensamento e de expressão, de tal modo que aquela sociedade seja vista com maus olhos por outras que garantam um Estado laico e o amplo direito de pensar e de se expressar conforme sua fé.
Este preconceito contra a sociedade fundada em dogmas religiosos, ao invés de leis do homem, fica bem delineado em O Vento Será Tua Herança, quando, na reunião com as grandes figuras da cidade, surge a reclamação de que a proibição das escolas públicas lecionarem evolucionismo, estava ensejando na negativa de universidades de estados vizinhos, para aceitarem os alunos de Hillsboro.
Justamente, para que se evite o retrocesso do pensamento, o engessamento do senso crítico social e o cerceamento de liberdades religiosas e intelectuais é que se garante, ao menos na prática, nos Estados Democráticos de Direito, a existência do Estado laico, o que quer dizer que o Estado se diz oficialmente imparcial no tocante às questões religiosas, não apoiando, nem rechaçando qualquer tipo de crença.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, denominada Constituição Cidadã ou Constituição Democrática, assegura, em seu preâmbulo, “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, além de proteger expressamente da liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (art. 5º, inciso VI).
Por tais razões, se diz que, no Brasil, o Estado é laico e é assegurada a liberdade intelectual (liberdade de opinião e de expressão) e a liberdade religiosa, de forma que somos livres para pensarmos e nos auto-definirmos de acordo com os nossos dogmas e princípios religiosos, bem como somos livres para expressarmos nossas crenças religiosas, desde que isso não invada a liberdade religiosa de outrem.
O resultado de um país laico, além de permitir a pluralidade de religiões, é impedir que o Estado, de qualquer forma, imponha determinada crença religiosa aos seus cidadãos, ou discrimine aqueles que deixam de proferir uma fé específica.
Contudo, é imperioso destacar que a laicidade no Estado brasileiro parece muito mais teórica do que prática, principalmente quando se verifica que o próprio preâmbulo da Constituição Federal é finalizado com “sob a proteção de Deus”, as notas de reais são assinaladas com a inscrição “Deus é fiel” e os tribunais contam com a presença de grandes crucifixos ao centro das salas de audiência.
Além disso, o próprio Supremo Tribunal Federal, instado a decidir sobre o ensino religioso nas escolas públicas (ADI 4439), decidiu que o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras pode ter natureza confessional, ao invés de pluri-religiosa (ou seja, as aulas seguem ensinamentos de uma religião específica), além de que não ficam impedidos de lecionar em tais colégios públicos professores na qualidade de representantes das confissões religiosas.
Nos Estados Unidos, onde a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento também é amplamente difundida e preservada, também há uma laicidade mitigada, quando se verifica que, em Tribunais, as testemunhas inquiridas devem prestar um juramento, com a mão direita posicionada sobre a bíblia, dizendo que juram dizer a verdade e nada além da verdade.
Em que pese tais incoerências, é necessário reconhecer que é por força da existência do estado laico, que se permitem as mais variadas formas de cultos religiosos, independentemente de qual seja a fé professada, bem como são reconhecidos como locais religiosos não apenas as igrejas e templos cristãos, mas também os que derivam de outras fés, além de ser protegida a assistência àqueles que, em razão da fé professada, não podem cumprir determinados compromissos com o Estado (a exemplo dos adventistas de sétimo dia, que devem reservar os sábados a Deus; ou os judeus, que, por honra ao Shabat, devem deixar de fazer qualquer trabalho, nas sextas-feiras, a partir do horário da Reza de Minchá).
Historicamente, é importante lembrar, ainda, que nunca foi uma boa ideia deixar política e religião se misturarem, afinal, além da estagnação do pensamento, já abordada, que impede o julgamento crítico dos dogmas religiosos repassados à sociedade, e do cerceamento da liberdade de crença. Em determinado momento é normal que o povo se sinta limitado, pressionado e sufocado, e deseje romper com os padrões impostos pela igreja, principalmente quando um grupo passa a se questionar sobre a veracidade das escrituras, o que não foi bem aceito nos anos em que Igreja e Estado eram um só.
Vale memorar que a Igreja se mostrou, ao longo da história, extremamente intolerante com aqueles que deixavam de acreditar no que se dizia ser “a verdade divina”, bem como o advogado de defesa, Henry Drummond, faz questão de mencionar em suas arguições ao longo de O Vento Será Tua Herança.
Os relatos de violência e intolerância religiosa são descritos na própria Bíblia, mais especificamente no Antigo Testamento, onde demonstram um pouco da realidade daqueles que buscam poder e dominação, sob a orientação divina, impondo suas próprias verdades religiosas acima das crenças e das vidas de quem apareça em seu caminho. Assim relata Josué:
Saíram, pois, estes e todos os seus exércitos com eles, muito povo, em multidões como a areia que está na praia do mar, e muitíssimos cavalos e carros. Todos esses reis se ajuntaram, e vieram, e se acamparam junto às águas de Merom, para pelejarem contra Israel.
Jo 11:4-15
E disse o Senhor a Josué: Não temas diante deles, porque amanhã a esta mesma hora eu os darei todos feridos diante dos filhos de Israel; os seus cavalos jarretarás e os seus carros queimarás a fogo.
E Josué, e toda a gente de guerra com ele, veio apressadamente sobre eles às águas de Merom, e deram neles de repente.
E o Senhor os deu na mão de Israel; e os feriram e os seguiram até à grande Sidom, e até Misrefote-Maim, e até ao vale de Mispa ao oriente; feriram-nos até não lhes deixarem nenhum. E fez-lhes Josué como o Senhor lhe dissera; os seus cavalos jarretou e os seus carros queimou a fogo.
E, naquele mesmo tempo, tornou Josué, e tomou a Hazor, e feriu à espada ao seu rei; porquanto Hazor, dantes, era a cabeça de todos esses reinos. E a toda alma que nela havia feriram a fio de espada e totalmente os destruíram, e nada restou do que tinha fôlego; e a Hazor queimou com fogo.
E Josué tomou todas as cidades desses reis e todos os seus reis e os feriu a fio de espada, destruindo-os totalmente, como ordenara Moisés, servo do Senhor. Tão-somente não queimaram os israelitas as cidades que estavam sobre os seus outeiros: salvo Hazor, a qual Josué queimou.
E todos os despojos dessas cidades e o gado os filhos de Israel saquearam para si; tão-somente a todos os homens feriram a fio de espada, até que os destruíram; nada do que fôlego tinha deixaram com vida.
Seguindo a intenção de povoamento, dominação e imposição do pensamento, ainda podemos citar as Cruzadas, da Idade Média, que contaram com um cenário de intolerância, mortes e torturas, o que se consumou no período da Santa Inquisição, quando a Igreja e o Estado explicitamente se misturavam, e a lei canônica afirmava que o Estado tinha o dever de punir os hereges (todos aqueles que discordassem dos dogmas católicos).
(Inherit the Wind, EUA, 113 min.)
Drama | Direção: Daniel Petrie | Roteiro: Jerome Lawrence, Robert E. Lee (peça), Nedrick Young, Harold Jacob Smith
Elenco: Jack Lemmon, George C. Scott, Lane Smith, Tom Everett Scott, Kathryn Morris, John Cullum, Brad Greenquist, David Wells, Peter Mackenzie, Dennis Cockrum, Steve Monroe, Jim Meskimen, Royce D. Applegate
O Vento Será Tua Herança (1999), terceira refilmagem de O Vento Será Tua Herança (1960)