- Gênero: Documentário
- Direção: Ricardo Calil, Renato Terra
- Roteiro: Caetano Veloso
- Duração: 84 minutos
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Caetano Veloso falou sobre a ditadura, cantou sobre a prisão e o exílio e em seu livro “Verdade Tropical” contou sobre o tempo na cadeia. Agora, ele se senta para conversar com você sobre esta experiência. Numa época em que o passado deixou de ser escondido para ser negado, o relato do cantor e compositor alcança lugar e importância na própria noção de democracia. Narciso em Férias é um documentário minimalista, não está interessado em ilustrações e pausas. Se intervém, o faz de maneira sutil e bem colocada, como quando ambienta o espectador com as cartelas de texto que abrem o filme.
A história narrada por Caetano tem início em 1968, 14 dias após o Ato Institucional nº 5, que cassou direitos políticos, fechou o Congresso e instituiu a censura, a perseguição política, as prisões e torturas. A conversa é tranquila, como é tranquilo o músico. Com seu jeito pausado, ele descreve seu cotidiano à época e dá detalhes sobre a prisão. Em cena, apenas uma cadeira e ele. Ao fundo, uma parede de concreto. A opção pelos poucos elementos faz sentido à medida em que o documentado começa a falar, com sua voz e seu corpo.
A câmera de Fernando Young procura quadros, ângulos e aproximações diferentes, se fecha e se abre acompanhando os movimentos e a fala do compositor. Ainda assim, tem uma posição muito marcada. Igual a Caetano que, naquela cadeira, ainda encontra possibilidades de movimento sem sair do lugar. A composição traz o momento em que ele estava preso, também sem poder sair do lugar, e destaca a mente inquieta que fala por gestos amplos, mãos e olhares.
Ver as imagens e ouvir relatos como o do período na solitária causam um contraste que dá muita força a Narciso em Férias. É interessante como o filme consegue transmitir a angústia sem precisar de nada além de um único espaço e palavras. O plano se abre e centraliza o personagem no jantar do general. O enquadra mais à esquerda quando gritos fora da cela acordam os então presos e a reafirmação da escravidão é por ele denunciada (“com o preso comum, de baixa renda, pode se fazer o que quiser”, diz).
Caetano é o dono do espaço, fala o quanto quer. As interferências dos documentaristas são pontuais, na lembrança de um nome esquecido ou em perguntas rápidas. Há apenas uma mais incisiva, quando ele recebe uma revista Manchete igual a que Dedé levara para ele na cadeia com as primeiras imagens do mundo. Não é preciso que se mostre mais do que ele folheando a revista para entender o peso daquele momento, das pessoas que dele participaram. O cantor se emociona, pede para parar e os diretores Ricardo Calil e Renato Terra, talvez com uma falta de jeito, dão o espaço requisitado.
Do fade volta-se para uma canção, e são poucos os momentos musicais no filme, “Hey Jude”, “Irene”, “Terra”. Caetano precisa falar, essa história precisa ser conhecida e não é preciso elaboração para isso, é preciso ouvir. Os documentaristas entendem esse ponto e deixam seu documentado narrar, rir, emocionar-se, divertir-se com a transcrição do depoimento e reagir às falsas acusações. Em suas divagações fala de sentimentos e da dificuldade de retomar a vida depois de experiências como esta.
Há momentos muito tocantes, como quando ele conta sua volta para a casa dos pais, em Salvador. Enquanto Gil, que também fora preso junto com ele, chorava calado, Caetano perdia a razão, não sabia mais quem era ou o que era, não entendia mais o tempo e nem conseguia se localizar no espaço. É forte como tantas outras coisas ditas com aquele paredão de concreto ao fundo.
No não explícito está a maior força de Narciso em Férias, tudo está claro, sem que isso ou aquilo precise ser mostrado para ser sentido ou entendido. O passado, mais uma vez, conversa com o nosso presente, e precisa ser escutado. Ao optar pelo pouco, Calil e Terra alcançam o muito, o todo. E eis aí uma coisa bem bonita de se ver.
Um grande momento
Subversivo e desvirilizante.