Crítica | Festival

O Silêncio de Eva

Há várias lacunas na história do cinema. Sem o devido cuidado, muita coisa se perdeu no tempo. A produção dos anos 1920, por exemplo, é majoritariamente conhecida por documentos, matérias, relatos e fotografias, já que a maior parte dos filmes estão perdidos. No Brasil não é diferente e talvez seja pior. Entre as figuras lendárias daqui, no período, está Eva Nill. Citada por uns como a musa de Humberto Mauro e como a Greta Garbo brasileira por outros, a atriz nascida no Cairo e criada em Cataguases foi muito mais do que isso. A filha do fotógrafo da cidade, Pietro Cornello (que mais tarde assumiria a direção de fotografia em seus filmes), tinha, desde cedo, consciência estética e uma expressividade impressionantes. É o pouco que sabemos dela e de sua passagem pelo cinema. E o que está em O Silêncio de Eva, filme que tenta descobrir mais sobre a vida e a obra da Nill.

A ausência de material é o maior desafio da diretora Elza Cataldo, já que muito pouco também sobrou registrado de Eva Nill: fotografias, pedaços de negativos, matérias (ela esteve em duas capas da revista Cinearte), críticas e depoimentos já não originais – aqueles que foram ouvidos e estão agora sendo repassados. Cataldo opta, então, por preencher as lacunas com encenação, ocupando esse espaço com o pouco que descobre e dando vida àquilo que imagina. Inês Peixoto será sua parceira nesta jornada, ora narrando a experiência, ora encenando, ora apresentando Nill para sua filha na preparação. O toque familiar, aliás, remete à realidade da figura central do filme. Peixoto está acompanhada por Eduardo Moreira, seu marido, e Bárbara Luz, sua filha. Já Nill sempre teve ao seu lado o pai e o irmão, Ben Nill, também ator.

As imagens de Eva Nill ganham destaque e a colocam imponente em cena. Com seus olhos penetrantes, ela é uma figura enigmática e envolvente. O percurso da atriz, que vai se desenhando com esses traços de passado recuperados, encenações e algumas suposições, interessa e dá ao espectador a possibilidade de tecer as suas próprias considerações sobre as passagens desconhecidas da atriz. “Se o conhecimento é limitado, a imaginação envolve o mundo”, como dizia Einstein. Porém é triste perceber o descaso pela memória do cinema brasileiro, que perde uma de suas figuras mais emblemáticas com tanto a contar, desde sua estreia em Valadião Cratera, ao lado de Humberto Mauro, ao abandono precoce do cinema, após as gravações de Barro Humano, de Adhemar Gonzaga. Ambos os filmes, assim como outros dois estrelados por Nill: Senhorita Agora Mesmo e Na Primavera da Vida, encontram-se perdidos.

A despeito de sua relevância e da curiosidade de sua história, a carreira breve fez com que o trabalho de pesquisa de O Silêncio de Eva fosse ainda mais difícil. Não é nada fácil resgatar registros fílmicos desse período e Cataldo conseguiu ainda bastante material. Por isso, o filme merece todos os créditos, assim como pela interessante ideia de usar a inventividade e a poesia para trazer à tona o que já se perdeu. Apesar disso, certas interferências causam um descompasso e, mesmo que tudo no filme seja importante para contar a história de Nill, como a participação de pesquisadores em cinema mudo, o tempo de fotógrafa, ou mesmo algumas alegorias, a quebra de andamento ou de estilo comprometem.

Ainda assim, é muito bom ter a oportunidade de conhecer Eva Nill, saber de sua presença no set, dos traços de autoria que desmancham a imagem de musa (isso é muito importante quando se fala de um cânone do cinema brasileiro) e da presença na indústria como dona de estúdio.

Um grande momento
“Eva Cornello” 

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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