A Edição de Verão da Berlinale foi um passo decisivo para a volta à normalidade depois de um sentido período infinito de congelamento de tudo o que compõe uma vida social e seus desdobramentos. Um decisivo e improtelável sinal para todo o setor audiovisual da Europa, mas também para os berlinenses, calejados de um lockdown que perdurou sete meses.
Também a disposição e coragem dos organizadores em realizar dois festivais diferentes no curto intervalo de três meses é louvável, mas essa Berlinale esteve longe da edição que aconteceu no mês de fevereiro, durante o inverno. Como bem percebeu o diretor brasileiro Luiz Bolognesi: “Eu sempre estiva aqui no inverno. Agora nesse verão.São duas cidades distintas!”. Quem mora abaixo da Linha do Equador vai rir dessas considerações pueris sobre o insuportável que é ir ao cinema quando a temperatura oscila entre 30° e 37°. Só quem vive na terra plana (e sem praia) Berlim sabe o inferno que significa quando o termômetro passa dos 30.
Os meus anteriores receios, expressados na Live juntamente com da editora-ehefe, Cecilia Barroso, foram café pequeno, frente ao que eu vivi na Edição Summer Special, que de especial, nada teve.
Muitas coisas estiveram fora de lugar, a política de comunicação com jornalistas sobre regulamentos e procedimentos, ao contrário do normal, exibiu muitas falhas e fez custar muito tempo sem praticamente nenhum retorno em forma de conteúdo para o trabalho jornalístico. Foi difícil passar para vocês a atmosfera do festival do outro lado do Atlântico e ainda em formato inusitado em tempo, lugar e clima.
O fator mais grave nessa edição para esquecer, foi o aniquilar do ritual de ir ao cinema, de assistir a um filme sem ter que observar o cenário de terror com uma espectadora tirando da bolsa um kebab gigante ou vislumbrar o casal sentado à minha frente no cinema principal, levantando toda a hora para renovar o estoque de cerveja. O ápice dessa distração incômoda, para dizer ao mínimo, foi o na noite da première do filme exibido na Mostra Competitiva e com duração de 4 horas, Mr Bachmann and His Class. O trabalho de muitos anos de observação de uma turma de jovens de background migratório e de famílias desajustadas mostra um retrato social incluindo empatia, amor, preocupação com o outro, ou seja, valores imateriais, mas nada disso empolgou a plateia que estava tão eletrizada por ter conseguido um ingresso, que nem sobrou atenção para o motivo principal da ida ao cinema: o filme.
Quando eu cheguei ao cinema principal, o professor já tinha o violão nas mãos e entoava “Imagine”, de John Lennon, depois foi a vez de “Knockin’ on Heavens’ Door”, mas a reacao do público contrapunha o calor sob o céu berlinense, era gélida. O cara de camisa verde mexia na barram, essa com ambições de Osama Bin Laden, a fileira ao lado nem pestanejava. O suplicar do simpático professor “Agora, todo mundo” desmanchava no ar seco berlinense. Eu pareço ter sido a única a cantar “Knocking On Heaven’s Door” e embalar na onda para animar o clima antes do filme.
Em pouquíssimas sessões às quais tive acesso ao cinema, pude vislumbrar um cenário de dois carinhas na fileira atrás da minha: “Você quer um?” perguntou o que estava mais perto de mim, enquanto segurava um ovo cozido na mão. Antes que o procedimento do descascar iniciasse, eu mudei de lugar, o que, aliás, era proibido.
Devido à pandemia, os ingressos foram acoplados aos números dos assentos com a identidade e registro da pessoa X. No meu primeiro dia no Cinema na Ilha dos Museus, um cara do meu lado espirrou. Eu virei a cabeça pro lado, mas o estresse já havia tomado conta de mim. Ele pegou o remédio pro nariz e começou a introduzir o spray nas narinas, direita, esquerda e eu vi o teto preto. Quando logo depois disso, ele espirrou, eu imediatamente levantei e mudei de lugar.
O Zeitgeist modificou tudo: nossos hábitos, nossos receios, nossas paúras e diminuiu radicalmente a qualidade do convívio social. Espirrar hoje é um ato de violência corporal e uma sensação dessa eu não queria ver associada com o sagrado ritual de ir ao cinema. Mas não tive chances de praticá-lo. Essa Berlinale foi um corta-tesão. Pronto. Falei.
Über Restrições
Os procedimentos variavam nos diferentes cinemas. Para esclarecer o X ou Y foram necessários anteriormente muitos telefonemas, emails e contato com o departamento de imprensa que, por sua vez, estava acorrentado com as medidas dos gestores de sala que eram implacáveis em suas regras. Por vezes, fora de qualquer objetividade, mas pelo fetiche por princípios.
A Berlinale 2021 foi, sem nenhum exagero, um balde de água fria para quem ama o cinema da forma mais genuína e, sim, da forma mais radical.
Escolha dos filmes
Também nesse quesito a qualidade dos filmes deixou a desejar. “Una película de policías”, não é um filme. É muito mais um mosaico de blocos com diferentes plots com narrativa, dramaturgia e condução de câmera alinhavadas na Filizola para El Gusto espectadores da Netflix que, por nenhum acaso, é a distribuidora mundial do produto. Nunca entenderei porque esse trabalho foi exibido na Mostra Competitiva e ainda muito menos porque deram o Urso de Prata de Contribuição Artística para Yibrán Asuad pela montagem. Talvez uma motivação quesito “diversificação de mercado?” A quebra de tabus e a carteirinha de “Prata da Casa” para as séries da Netflix, com o embrulho de filme de qualidade? Só o roteiro merece o predicado de “indiscutível”.
Berlinale Small Size
A Mostra competitiva em 2021 na corrida pelos Ursos foi bem mais enxuta com 15 filmes e pouquíssimas mulheres na cadeira de direção. A Berlinale 2022 irá mostrar se essa característica teve correlação com a interrupção de produções devido à pandemia ou se essa essa imagem é a linha preferida pelo novo diretor e pela atual comissão de seleção. Vamos ver.
A Panorama também teve edição enxuta, com 16 longas-metragens.
Fica a teimosa impressão que a escolha dos filmes deste ano teve caráter aleatório e foram determinados pelos parâmetros de mercado (lançamento, distribuição, promoção etc). Faltou a Red Line, tão constante na gestão de Dieter Kosslick. Uma temática ou um lema que, em diferentes nuances, narrativas e opções estilísticas, atravessava toda a programação do festival.
Início, o fim e o meio
O atual diretor da Berlinale, Carlo Chatrian é, sem quaisquer dúvidas, um expert e aficionado do cinema europeu, mas para emplacar como diretor do maior festival de público do mundo, é preciso muito mais: não basta aprender a língua alemã (como mostram seus progressos feitos comparados à Berlinale 2020), que na melhor das hipóteses faz angariar pontos de simpatia do público mais conservador ou afagar o ego dos alemães mais vaidosos, é preciso entender e incorporar o espírito berlinense, uma Melange de caos, Glamour, Understatement, seriedade e perspectiva do cinema como ferramenta de transformação. Decerto vir a ser o sucessor daquele que era chamado de Mr. Berlinale e era o queridinho da mídia, é tarefa de Hércules, mas os déficits de Chatrian são inúmeros. Boa vontade só, não irá funcionar nem a médio prazo. Chatrian ainda não encontrou o seu papel, ainda está tateando no escuro e as minhas esperanças de que ele encontre o seu lugar em Berlim são mínimas.
Dieter Kosslick não era só diretor quando subia ao palco para anunciar os grandes de Hollywood ou se gabar dizendo que chegava atrasado por ter ido jantar com a Madonna no bairro super cool de Kreuzberg. Ele era Mr. Berlinale o ano inteiro, o tempo todo. Agora, a Berlinale tem uma dupla de CEO e diretor que é estéril, burocrática e seca na forma de se apresentar e o pior de tudo, fria, longe de arrebatar os berlinenses a longo prazo depois que a normalidade tiver voltado e os festivais e eventos culturais perderem o caráter de excepcionalidade.
A essência permanece
Desde a Berlinale 2020, o último grande festival a acontecer, quase tudo mudou, e 2021 foi também símbolo de abstinência de muitos prazeres ligados a um festival de cinema. Ok, disso ninguém tem culpa, mas teria sido tão bom se os gerentes das salas tivessem uma ideia melhor do que é ir ao cinema, se não fosse necessário explicar de forma exaustiva para organizadores que não basta assistir a um filme escondidinho em casa e escrever sobre ele e missão cumprida. É preciso sentir o cheiro, ver a paisagem, falar com cinéfilos, em suma: juntar um monte de impressões.
Um Festival, ainda mais a Berlinale acontecendo durante o verão tem um atmosfera única, ainda mais depois da reabertura dos eventos culturais na cidade e uma brisa de normalidade que chegou na mesma semana de abertura do festival, no dia 9.
A Berlinale 2021 ficará marcada por muitas coisas fora do lugar e falta de coerência na programação. A organização de um evento da imensidão, significado e simbologia, especialmente da Summer Special, é só um ingrediente. E tantos outros brilharam pela ausência, porém num quesito, a Berlinale se manteve coerente: ela continua sendo um festival político e que se posiciona SEMPRE.
O fato do filme brasileiro “A Última Floresta” produzido pela Gullane e Buriti Filmes em parceria com a Hutukara Associação Yanomami, Instituto Socioambiental (ISA) e com o apoio do Greepeace ter ganho o Prêmio de Público é, a priori, não “somente” pelo filme como ferramenta audiovisual, mas pelo upgrade em termos de relevância política que ele angaria por, além do fato de ter sido selecionado para Berlim, mas, principalmente, levar o cobiçado e prestigioso Prêmio de Público da Mostra Panorama, a segunda mais importante do festival. O cinema brasileiro já foi, várias vezes detendor desse prêmio, por exemplo com os filmes Lixo Extraordinário (2010) Que Horas Ela Volta? (2015).
Cinema brasileiro estrangulado
De “Brasinale”, como apelidou a jornalista Flávia Guerra a Berlinale 2020, em 2021 o festival foi palco de somente um filme representando o cinema nacional. Que o meticuloso estrangulamento do Setor Audiovisual no Brasil teria tão rápido desdobramento em Berlim, é uma surpresa, mas também um alerta, uma bandeira e essa, Luiz Bolognesi irá carregar pelo mundo até a chegada de verdejantes tempos.
A Berlinale 37° seria pra esquecer por completo, não fosse a bandeira pelo povo indígena, donos desse país, no exemplo dos Yanomami. Que seja essa bandeira a carregar até a chegada de um novo tempo e de uma Berlinale mais bem estruturada, que volte a ser o paraíso para obcecados pela Sétima Arte e durante o inverno berlinense, com direito à perrengues para chegar em Postdamer Platz, onde fica o cinema principal, mas por misericórdia sem ovo cozido sendo tirado da tigela, barulho de pacote de batata-frita e sem Kebab XXL.