Crítica | Outras metragens

Caixa Preta

Para não esquecer, celebrar

(Caixa Preta , BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Experimental
  • Direção: Saskia, Bernardo Oliveira
  • Roteiro: Saskia, Bernardo Oliveira, Negro Léo
  • Duração: 50 minutos

Cinema é arte sensorial, de imersão subjetiva, e nem sempre encontramos um ponto necessariamente formatado, ou seja, uma produção clássica-narrativa não se faz pela pressão para tal. Um filme-ensaio, por exemplo, pode parecer uma instalação estanque para muita gente, mas quando se mergulha em Caixa Preta, o espectador precisa estar pronto para o retorno, qualquer tipo dele. Aqui, a recompensa é justamente essa imersão, que precisa ser permitida; se deixar levar. Dirigido por Saskia e Bernardo Oliveira, artistas e pensadores pretos, o filme segue um fluxo de reflexão muito fácil de absorver, ao contrário do que poderia se imaginar, a princípio. 

É como se fôssemos atirados em uma espécie de espaço-tempo com alguma especificidade, mas sem a exigência de uma formatação de tese. É como se fora um jogo de leitura e assimilação de códigos, que deciframos com certa facilidade ao acessar sua concepção criativa. Do início dos tempos, a ideia da ausência de matéria nos remete a ancestralidade de um racismo que se retroalimenta. Caixa Preta se amplifica não por repisar sua ideia, mas por torná-la cada vez mais direta e incômoda, e nesse caso em particular, o incômodo é buscado e conseguido pelos realizadores. 

Seja pelo trabalho sonoro, de apuro invejável e magnetismo ímpar, ou pela conclusão das imagens, que acertam em demorar a buscar sentido. Sua mola é a conexão entre essas duas ideias – imagem e som – para reconfigurar o manancial de elementos entre o que seria a celebração humana em estado puro, e as igualmente puras demonstrações de ódio e estupefação diante do caos. Em A Morte Branca do Feiticeiro Negro, Rodrigo Ribeiro-Andrade transforma prosa em poesia estética para narrar um caso dentre tantos da historicidade da violência racial. Aqui em Caixa Preta, seus diretores propõem transitar entre esse vandalismo social que é a violência de qualquer espécie contra pessoas pretas, e a energia que emana de suas cerimônias, de qualquer ordem. 

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Revela aos poucos sua textura em imagem, e coordena a interação entre o que é visto e o que é ouvido com um cuidado detalhado, que explode em fúria bastante contundente. O que será possível de permitir diante da barbárie? Responder às violências múltiplas, ao genocídio, a zumbificação gerada pelo consumismo, ao transe provocado pela religião, com uma releitura artística sobre esses lugares de reflexão. O que é preciso para reunificar uma etnia, após anos e anos de desestruturação sistêmica provocada pela morte? Tornar disforme o que é horror, e uniforme o que é júbilo, consagração. Realçar nomes que trazem orgulho ao debate, e conectar passado, presente e futuro não para apagar, mas para retorcer verdades e provocar saídas outras. 

A sensorialidade de Caixa Preta permite ao espectador se aproximar devagar da sedução almejada por tais imagens, e se permitir seduzir. Não falta ironia ao observar o empreendimento alçado a uma categoria messiânica no elaborar de catarses contínuas; Saskia e Bernardo se banham de estripulias visuais e sonoras para chamar o espectador para uma sessão de descarrego dos sentidos. Não saímos iguais dessa sessão, após a explosão de imagens que tentam sintetizar pavor e sincera comunhão. Não é uma jornada movida pela compreensão direta, mas pela via empática com o qual mergulhamos nessa via de mão dupla, entre o que não se quer mais e o que se quer para sempre. Experimentar e compreender que precisaremos da catarse para continuarmos vivos, e combativos. 

Um grande momento

Ciranda do gatilho

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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