Pacifiction, de Albert Serra
(França/Espanha/Portugal/Alemanha, 2022)
Competição
Stars at Noon, de Claire Denis (França, 2022)
Competição
Conforme dizíamos outro dia, em texto anterior dessa cobertura, o sentimento do deslocamento é, sem dúvida, uma das mais fortes âncoras dramáticas que podem encontrar determinadas obras no cinema. Isso certamente tem a ver com a maneira pela qual a linguagem audiovisual se presta, com muita naturalidade, a reproduzir sentimentos de estranheza e “des-localização” que, quando associados à experiência de personagens específicos nesse relacionamento com o espectador através da partilha de um ponto de vista, podem resultar em experiências bastante poderosas de imersão pelo viés da estranheza.
Pois é de imersão e estranheza que mais se trata em Pacifiction, primeiro longa do espanhol Albert Serra a passar em competição em Cannes, onde seus trabalhos anteriores foram descobertos de maneira mais ampla pela primeira vez (na Quinzena dos Realizadores, em 2006) e depois exibidos em várias outras seções (a mais recente com o premiado Liberté, na Un Certain Regard). Ainda que esta sua trajetória por esse universo um tanto codificado do cinema de autor tenha algo de bastante típico (o surgimento nas mostras paralelas, a “evolução” até a competição etc), o que fica de mais forte na experiência desse seu novo trabalho é justamente as maneiras pelas quais, ainda que Serra lide aqui com ambições notadamente ampliadas (seja em questões de produção como orçamento ou dimensão mesmo do filme; seja nas proposições dramáticas e narrativas de um primeiro filme contemporâneo, passado em um universo geográfico, humano e político complexo), ele segue propondo um cinema extremamente único e pessoal, aparentemente sem interesse por determinadas “negociações” para se estabelecer mais confortavelmente num outro patamar.
Como é comum ao seu cinema, o interesse do espectador pelo drama que se engendra na tela em Pacifiction certamente não se baseará em nada que tenha a ver com o desenrolar de uma narrativa nos moldes clássicos. Como é típico dele, Serra está interessado, antes de tudo, em duas dimensões: a do habitar um espaço específico, com tudo que ele tem de único (aqui nesse caso, a beleza e o mistério enormes da Polinésia); e a acompanhar a forma como os corpos de seus atores evoluem e interagem por entre esses espaços. O que surge como novidade aqui é, acima de tudo, a imposição de um contexto social e histórico contemporâneo de uma considerável complexidade (no caso, a questão da presença colonial nesse ambiente, e sua relação com as populações locais), o qual também é determinante para a deriva dos personagens pelo espaço. A maneira como Serra mistura menções a várias tramas ao redor desse contexto, com a construção de cenas totalmente ancoradas no sentimento da relação dos corpos com seu entorno (especialmente nas cenas na boate ou na fenomenal cena construída em meio às ondas gigantes no oceano), é aquilo que faz com que Pacifiction exista sempre numa mais que produtiva tensão entre um impulso narrativo constantemente misterioso e um sentimento aguçado do estar no mundo de seus personagens.
Para conseguir justamente que estejamos ancorados em meio a esses movimentos bastante opostos que movem sua narrativa, Serra conta acima de tudo com uma performance desestabilizante e preciosa de Benoît Magimel, que assume aqui um papel de estrela, em mais de um sentido: ao mesmo tempo em que ele exercita o magnetismo dessas presenças cinematográficas cuja simples presença em tela nos fascina, ele efetivamente cria essa figura ao redor da qual, tal qual um astro celeste, tudo no filme parece orbitar. Sua personagem extremamente dúbia, do ocupante colonialista que acaba se encontrando mais no espaço em que está do que na lembrança de qualquer vida anterior, é o que mantém o filme o tempo todo no limite da repulsa e da empatia. Assim, cada interação de De Roller (seu personagem) é cheia de tensão, mas também de calor e de pulsões vitais fortes.
Se nunca sabemos exatamente o que ele pensa ou sente de verdade, a maneira como busca encenar esse lugar de poder que ocupa, entremeado com uma dimensão pessoal e humana nos encontros, faz com que nunca consigamos nos ver totalmente distantes dele. E assim Pacifiction parece brincar de maneira muito sagaz com alguns códigos do cinema de espionagem e de grandes tramas políticas, sem no entanto nunca sabermos se, de fato, os personagens estão habitando uma narrativa que inclui esses aspectos ou tão somente imaginando que participam de uma (a tal “pacificção”, talvez). É um filme que trabalha com muita inteligência e autoconsciência a ideia de “exotismo” que tanto condiciona a forma como a maior parte do mundo lida com a geografia e a paisagem humana da região polinésia, e que nunca esconde partilhar do olhar estrangeiro de seus personagens em relação a ela.
Em mais de um sentido, por conta de tudo isso, entre os inúmeros outros filmes que a obra de Serra traz à lembrança se destaca O Intruso, de Claire Denis, outro trabalho que girava ao redor de uma experiência profundamente ancorada na perspectiva de um personagem principal que, em determinado momento, vai para a Polinésia envolvido em uma trama misteriosa, onde vai lidar com questões de identidade e de vida e morte. É interessante, portanto, que tenha sido exibido este ano em Cannes no dia seguinte ao novo filme de Denis, o qual propõe uma nova viagem a um território com algo de cinematograficamente exótico (no caso, a América Central), e mais uma vez com personagens de proveniência estrangeira (dessa vez, uma americana e um inglês) que ali se veem envolvidos numa misteriosa e paranoica trama de conflitos políticos e interesses escusos no mínimo obscuros.
O problema desse novo filme de Denis é que, justamente, essa noção de “mais uma vez” acabe parecendo se impor ao seu filme de uma maneira um pouco sufocante: a impressão é de que a forma já conhecida dela trabalhar sua construção de drama, cenas, personagens está em descompasso com as demandas de suas personagens (e, decisivamente, dos atores que os encarnam), e que a maneira generalista de lidar com o contexto político e social em que estes se inserem acaba tirando do filme aquela que poderia ser sua fonte de maior interesse. De fato, ainda que em entrevistas sobre seu novo trabalho Denis discuta com profundidade como sendo motivações importantes para seu filme as condições e questões bastante específicas do contexto da Nicarágua e sua realidade atual (numa possível reflexão interessante, pois o filme se baseia num livro escrito e passado nos anos 80, momento em que começavam movimentações sócio-políticas determinantes para o que se passa hoje), na tela tudo isso parece se esvanecer ao redor do tal “cinema do fluxo” que ela tanto passou a encarnar, em sua aposta nas cenas propositalmente incompletas, na impressão na tela da força dos momentos, na vivência nos corpos e interações entre seus atores. Dessa maneira, porém, resta pouco das tais questões nicaraguenses no filme, que passa muito mais por um sentimento indeterminado de um ambiente de “corrupção e autoritarismo latino-americano” bastante batido, e nos quais seus personagens parecem menos imersos do que turistas.
Este sentimento de inadequação meio generalizado se reforça, por exemplo, quando surge em cena, já no ato final, o personagem interpretado por Benny Safdie, que surge num registro totalmente distinto. Se inegavelmente ele consegue, em pouco mais de quinze minutos de tela, elevar o material a um outro grau de interesse e adesão a partir de uma mistura de construção de personagem com o mais básico carisma em tela, por outro lado ele acaba deixando ainda mais a nu tudo aquilo que o filme não conseguia atingir até ali. Ainda que seja óbvio que os sentimentos de inadequação, desencontro e solidão sejam partilhados pelos protagonistas, motivo pelo qual se busca dificultar em algum grau sua empatia com o espectador, isso tudo fica num nível muito conceitual da experiência. E, por mais que seja admirável a forma como o filme incorpore elementos como a própria pandemia da COVID como linguagem que o mundo impõe ao seu drama, o fato de que não consigamos nos ancorar no tempo e espaço ao redor dos personagens parece tornar tudo um exercício bastante frio e distanciado – tudo aquilo que menos relacionamos com o cinema de Denis, em geral.
Frieza e distanciamento já são elementos determinantes, por outro lado, na construção do universo e dos personagens de 1976, estreia na ficção em longas da atriz e realizadora chilena Manuela Martelli. Como o seu título já indica, sua localização no tempo histórico é essencial: estamos no ápice da ditadura de Pinochet, no Chile, e isso determinará tudo que sua protagonista vive. Conforme encarnada (admiravelmente) por Aline Kuppenheim, a personagem de Carmen vivencia um processo gradual de deslocamento por dentro de sua própria estrutura social e nacional. Ao contrário dos dois filmes anteriores, e muitos outros que mencionamos no texto anterior sobre filmes em que a figura do estrangeiro em terra estranha é central para a narrativa, aqui se trata de um movimento quase oposto: ainda que esteja em seu país, e literalmente na sua casa, Carmen vai aos poucos se descobrindo mais e mais incapaz de se sentir abraçada e completa nos papeis que interpreta nessa vida cotidiana e familiar, por conta do contexto social maior.
Martelli delineia cuidadosamente cada elemento da construção dessa alienação emocional (que, curiosamente, acontece enquanto ela vai se desalienando politicamente), a qual acompanhamos passo a passo com clareza e, ao mesmo tempo, um sentimento trágico bem construído. No entanto, o que acontece aqui é quase o contrário do filme de Denis: esse cuidado extremo nessa construção acaba sufocando o sentimento mais direto em relação ao drama do filme. Desde algumas escolhas estéticas (como a imposição excessiva de um clima pela música ou de um sentimento pelas escolhas rígidas dos quadros) até uma forma de desenhar determinados clímaxes dramáticos, parece faltar espaço para mais dúvidas e enigmas no que é uma trajetória com objetivos bastante cristalinos de metáfora. Assim, ainda que consiga construir aqui um retrato por dentro dessa classe média que é, em toda sua contradição, o alicerce principal dos regimes autoritários latinos, o filme parece não evoluir o suficiente do que já nos indica nos seus quinze, vinte primeiros minutos até a sua conclusão.
No fundo, o que estes dois filmes em conjunto acabam nos relembrando é como a construção da ficção no cinema a partir de situações macropolíticas e históricas está sempre num fio da navalha tênue, muito difícil de ser trilhado. Se em Denis a falta de capacidade de inserir o contexto histórico e social em cena acaba diminuindo a percepção de relevância e empatia com os trajetos e os dramas dos protagonistas, em Martelli esta atenção ao contexto acaba sufocando, por sua imposição, as possibilidades de sua protagonista e sua trajetória escaparem às determinações do seu meio. Não são filmes que não encontrem belas cenas isoladas e nem deixem de nos fazer habitar experiências fortes, mas o sentimento de incompletude de que não chegam a escapar relembram que, em cinema, a ideia de inte(g)ração entre o fundo de quadro e a frente do foco pedem uma escala muito precisa pra estarem em melhor proporção.