Crítica | Festival

Cannes 2022: Notícias do mundo

Pamfir, de Dmitro Sukholytkyy-Sobchuk
(Ucrânia/França/Polônia/Chile/Alemanha/Luxemburgo, 2022)
Quinzena dos Realizadores

Sous les figues, de Erige Sehiri
(Tunísia/Suiça/Alemanha, 2022)
Quinzena dos Realizadores

Mi país imaginario, de Patricio Guzmán
(Chile/França, 2022) – Competição

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Logo depois da sua invenção no final do século XIX, um dos primeiros usos mais constantes e bem sucedidos do cinema foi o de permitir aos espectadores pelo mundo verem, na maioria dos casos pela primeira vez, imagens em movimento de lugares que nunca tinham sonhado em conhecer para além de pinturas ou descrições em literatura. Foi assim que os chamados “travelogues” traziam, antes de tudo, o sabor do exótico que amainava uma curiosidade inerente: finalmente pessoas comuns na Europa ou nos EUA poderiam ver imagens do Japão, da China, da América do Sul! Embora o cinema (ainda mais na sua mais contemporânea encarnação como parte de uma “cadeia audiovisual” onipresente) tenha mudado muito desde então, e as imagens dos lugares mais distintos sejam acessíveis com um clique num celular, havendo muito pouca coisas que se pode ainda dizer serem “não vistas”, algo não mudou tanto assim, ao menos nesse universo dos festivais de cinema: o desejo por ver algo proveniente de lugares pouco usuais na dieta de consumo mais constante dos “produtos audiovisuais”, ainda hoje bastante concentrada. Se de fato não se trata mais do mesmo impulso original do simplesmente “ver algo pela primeira vez”, passou-se a um outro desejo quase complementar a este: o de conhecer melhor, e tentar entender mais a fundo algo sobre o que se sabe pouco ou muito superficialmente.

Pois bem, nesse atual momento pode-se dizer que poucos países estão mais “em voga” no que tenha que ver com esse desejo de compreensão do que a Ucrânia. Não é surpreendente, portanto, que haja nada menos que quatro longas deste país nas distintas seleções do Festival de Cannes. Três deles, uma ficção e dois documentários, lidam de forma mais direta com questões ao redor da Guerra atualmente em curso, mas o quarto filme, Pamfir, possivelmente será o mais revelador justamente por não se dedicar diretamente a nada que remeta ao conflito atual. 

Pamfir
Cortesia La Quinzaine des Réalisateurs Pamfir, de Dmitro Sukholytkyy-Sobchuk

Sua história se passa toda numa pequena aldeia da “Ucrânia profunda”, na porção Oeste do país, aquela mais próxima de alguns países da atual União Europeia do que da Rússia e outras ex-repúblicas soviéticas. Inclusive a principal questão do filme, que impulsiona a narrativa, lida com essa localização: o personagem-título é um homem que passa a maior parte do seu tempo trabalhando como imigrante em países ocidentais, e que conhecemos justamente num momento em que está voltando para casa, para uma visita a sua mulher, filho, irmão e pais que ainda moram no interior ucraniano (embora com o pai ele já não se comunique por conta de um episódio violento do passado). A partir do retorno de Pamfir uma série de acontecimentos se encadeiam, todos lidando de uma forma ou de outra com essa perspectiva do ficar em casa ou viver no exterior. O retrato que seu diretor estreante em longas traça é justamente o dessa terra um pouco sem futuro, onde até para quem fica uma das únicas possibilidades de ganhar um dinheiro mais significativo é, justamente, o de contrabandear bens na fronteira com o Ocidente. 

Tudo isso descrito poderia dar vazão a filmes muito diferentes, mas a opção de Dmitro Sukholytkyy-Sobchuk é uma de uma aposta bastante impressionante na imersão sensorial naquele espaço, a partir de dois “corpos” diferentes: o do protagonista, numa atuação magnética e algo animalesca de Oleksandr Yatsentyuk; e o da sua câmera, em constante movimento pelos espaços num balé com a paisagem e os personagens, em planos-sequência que nunca são sentidos como auto-centrados na sua destreza, mas sim ajudando a nos colocar numa sensação de desequilíbrio e reenquadramento constante face ao que assistimos. O filme se desenrola a partir disso num ritmo quase vertiginoso, numa descida ao inferno que se sente como uma natural progressão da falta de possibilidades que oprime os personagens. 

Como dizíamos, em nenhum momento há qualquer citação à Rússia nem à guerra, mas se constrói uma imagem de uma “vida comum” ucraniana bastante opressiva, num contexto de pressão entre o fugir do seu país e lidar com o domínio de uma realidade por figuras de poder no mínimo problemáticas. No entanto, o principal triunfo de Pamfir é justamente que não pareça em nenhum momento que o maior interesse do seu realizador é exatamente nos ensinar nada, nem fazer nenhuma afirmação: a câmera que acompanha esses corpos pelo espaço e o som que nos imerge neles busca simplesmente nosso engajamento numa narrativa organicamente construída, usando o que o cinema faz de melhor para revelar o mundo a partir da empatia com um grupo de personagens.

Sous le figues
Cortesia La Quinzaine des Réalisateurs Sous les figues, de Erige Sehiri

É um pouco o que um outro filme da Quinzena dos Realizadores, o tunisiano Sous les figues, não chega a conseguir de todo. Aqui, também, há a dedicação para se traçar um pequeno mergulho no cotidiano de uma vida do interior de um país marcado por questões sociais determinantes (embora, de novo, tudo que tenha a ver de uma maneira mais frontal com a chamada Primavera Árabe, que “nasceu” neste país, esteja fora de quadro no filme). Especialmente aqui no caso desse país, que também tem três longas no Festival, as questões da vivência feminina dentro dos limites do cotidiano de uma classe trabalhadora na parte mais remota do país é o foco principal, num filme com uma proposta temporal muito interessante: todo ele se passa ao longo de um dia de trabalho na coleta de figos, usando esse espaço como um microcosmo de relações e vivências mais amplas, as quais nunca vamos ver, apenas ouvindo referências constantes.

Trabalhando apenas com não-atores locais (na verdade, o filme nasce justamente do encontro da sua diretora com uma das atrizes num processo de preparação para um outro trabalho, e do seu fascínio ao descobrir mais sobre a vida dela como uma coletora de frutas), a diretora se esforça para desenhar algumas linhas narrativas e dramáticas entre as personagens, sempre reforçando seu aspecto de construção ficcional. No entanto, ainda que encontre alguns belos momentos aqui e ali, e sem dúvida permita conhecer por dentro uma vivência muito específica, não chega a encadear de fato conexões a partir da ficção que tenta, bastante forçadamente, urdir. A impressão que fica, ao final, é uma que não é incomum em alguns filmes com origens similares: que a ficção, que surge como uma tentativa de ir além do registro simples do real pela via documental, talvez não fosse de fato a aproximação mais interessante, pois outro parece ser o impulso verdadeiro por detrás do gesto realizador. É o momento em que o desvelar de um universo deveria ser assumido como um objetivo em si, podendo ser muito mais satisfatório que um drama que não se constrói.

Falando em documentários, e nessa ideia de fazer ver o mundo, essa é outra tradição do Festival: ele exibe uma quantidade pequena de filmes de não-ficção, havendo duas características principais – os filmes sobre o cinema e os filmes que lidam com os “grandes temas” do mundo no momento. Nesse sentido, há filmes sobre a guerra na Ucrânia, como mencionado, ou também sobre a crise climática – mas, curiosamente, nada sobre a pandemia, que aliás também tem estado eminentemente ausente dos filmes de ficção exibidos, como se o clima de negação absoluta de lidar com esses últimos dois anos e com o que ainda resta dessa doença pelo mundo fosse a única maneira de conseguir seguir adiante. Pois uma outra grande ausente do Festival, ao menos na maneira como tem estado presente historicamente, é a América Latina: há pouquíssimos filmes em todas as seções do Festival, sendo que nenhum longa contemporâneo brasileiro, argentino ou mexicano, algo realmente impressionante.

Mi país imaginario
Atacama Productions Mi país imaginario, de Patricio Guzmán

Juntando esses dois universos, um dos poucos longas em exibição é o novo trabalho do cineasta chileno Patricio Guzmán, que estreou mundialmente boa parte de seus últimos trabalhos em Cannes. Mi país imaginario é um filme que busca capturar no calor da hora os acontecimentos políticos do Chile nos últimos 3 anos, desde os enormes movimentos de protestos nas ruas que explodiram em 2019. Já nas primeiras (mas também nas últimas) imagens do filme, que fazem referência à chegada ao poder de Allende em 1970, Guzmán deixa claro que o ponto de vista do filme é de alguém de uma outra geração, que olha com surpresa, interesse e, inclusive, alguma idealização, o que acontece nesse país que, num certo sentido, já não é mais exatamente o seu. Assim, o filme tem o ritmo e o formato de alguém que busca se debruçar e, mais que tudo, entender algo do que não faz parte diretamente – no que o seu olhar, mesmo de dentro, se enquadra bastante bem em como o Festival costuma se colocar face ao documentário.

Trata-se de um filme bastante convencional no sentido narrativo ou estético, no qual Guzmán sucede algumas cenas capturadas nas ruas com uma série de entrevistas em formato mais clássico. No entanto, é na escolha dessas entrevistas que Guzmán toma as duas posições centrais sobre o ponto de vista do filme. Primeiro, a de que não é um filme “imparcial”, por supuesto: só se escuta pessoas que tomaram partido das manifestações e que as compreendem como um fenômeno não somente positivo, como necessário e essencial para o futuro do país. Mas a segunda decisão é talvez a mais significativa (pois esta anterior chega a ser óbvia): só se escutam mulheres. A única voz masculina do filme é aquela em off do próprio Guzmán que, salvo no começo e no final, participa bem pouco: de resto, o cineasta deixa claro que, ainda que não seja um movimento exclusive das mulheres, são elas que literalmente dão corpo a ele, e por isso que precisam ser ouvidas quando se pensa em explicitar expectativas, sonhos, decepções ao redor deste momento.

Na soma de algumas dessas características, vai ficando claro aos poucos um entendimento do Festival de que esses fenômenos não foram exclusivos ao Chile, tanto assim que o filme, como quase todos que se mostram em Cannes, é feito em coprodução com um país europeu, no caso a própria França. Embora haja muitas particularidades entre o que se passou ali, ou no caso dos protestos na própria França nos últimos anos, ou nos EUA após o assassinato de George Floyd, etc, há sem dúvida uma crise de representatividade que é muito maior que qualquer contexto nacional, e é esse o motivo principal para este filme estar agora em Cannes. Claro que para um brasileiro assistir este retrato de uma “pequena revolução”, que resulta numa vitória presidencial e num plebiscito para uma nova constituinte, ainda que entendendo que nada disso garanta nenhuma manutenção a longo prazo das atuais condições mais favoráveis, é quase que um mergulho numa utopia. Aquelas “notícias do mundo” que queremos poder não só assistir, mas talvez em breve partilhar também.

[75º Festival de Cannes]

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Eduardo Valente

Eduardo Valente é cineasta, crítico e programador de cinema, trabalhando desde 2016 como delegado do Festival de Berlim no Brasil. Ele também é membro do comitê de seleção do Olhar de Cinema, festival que acontece em Curitiba. Dirigiu três curtas e um longa metragem, todos exibidos no Festival de Cannes; trabalhou como assessor internacional na ANCINE; e foi editor de duas revistas online de crítica de cinema, Contracampo e Cinética.
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