- Gênero: Experimental
- Direção: Peter Azen
- Roteiro: Peter Azen
- Duração: 70 minutos
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Há algo de melancólico e surreal quando, em 2021, um filme se inicia com uma loja de portas constantemente cerradas, seguido por minutos onde suas instalações não sejam vistas, a movimentação constante nunca a mostre totalmente aberta, e aos poucos veículos de transporte se posicionem em frente a ela, no plano. Não era essa a intenção de Peter Azen, conforme visto ao longo dessa sequência mas, sobrevivente do Covid-19, o espectador sai incomodado com a súbita informação sobre o fim no qual nos arremessa Centro, de cara. Tudo é efêmero, até a Módulo 3 — todos nós somos. Terá ela sobrevivido à tragédia, ou foi mais uma tragada pelo pior governo que o Brasil já teve justamente quando o país mais precisava de um?
Crônica sobre 24 horas na região central do Rio de Janeiro, zona da cidade tremendamente afetada pela necessidade exigida pela pandemia, o novo filme de Azen (de Calidris) nasce filho de um tempo que já não existe mais. Rodado na reta final de 2019, essa informação é dada no letreiro inicial da produção, que ainda assim não nos faz capaz de enxergar outra coisa que não o mundo no qual não vivemos, mas sobre o qual lembramos e desejamos voltar. Os sons e as imagens parecem reais, mas seu deslocamento proposto pela narrativa se faz imerso em estranhamento, em um tempo absorvido por algo que já é mais.
O congelamento das imagens agrega ainda mais surrealismo ao longa, ao mesmo tempo em que reflete o hoje. A captura dos planos obtida dessa forma afasta o movimento natural da imagem, tornando-a solitária como seus personagens estáticos, de pouca companhia. Estão todos sozinhos em seus universos congelados, impossíveis de tocar uns aos outros, impedidos de comunicação externa, a observar o que foi o mundo (como o cachorro na sacada) ou a viver em uma realidade estática, a única possível hoje para o exterior. A pressa de outrora se transformou em imobilidade no tal “novo normal” em sua forma inútil de compreender a vida.
A vida, no entanto, sobrevive ao isolamento imagético e revela seu som descolado do plano. Essa concepção narrativa consegue criar distorções e aproximações, como o trabalho braçal masculino da imagem corresponder à notícias futebolísticas no rádio. O filme funciona, aos poucos, como o registro de um passado que também é o futuro — ao mesmo tempo, tudo se encerrar e eventualmente reinicia. O desenrolar de Centro e o movimento final ditam o mesmo, esse moto perpétuo há de começar todos os dias, em todos os tempos. Ao reforçar sua condição cotidiana, o filme abraça o efêmero de todas as coisas e sua brevidade.
Azen encontra personagens preciosos como só o acaso poderia conceber, e isso representa um ganho empático e também um calcanhar de Aquiles. Quando você apresenta tipos em uma narrativa, passa a correr o risco da identificação do público com os mesmos, e na ausência deles, arcar com as consequências de suas saídas. Centro não se enquadra no convencional, mas ao reverberar uma ânsia pela união e pelo afeto, se coloca nesse lugar do encontro; quando suas figuras, suas vozes e seu olhar não estão mais em cena, o filme ressente seus sumiços. Ou seja, suas presenças tanto funcionaram quanto seu desaparecimento também, porém do lado oposto.
Ainda que falte um pilar de união onde se perceba o propósito de tais escolhas de montagem, sua justaposição de eventos não entrecruza os espaços em sua sequência geográfica, nem une suas passagens em blocos temáticos — o filme tem uma anarquia estrutural que pertence à sua espinha dorsal emocional, que tem força temporal inegável. A trajetória experimental de Azen, no entanto, encontra esses elementos de maneira despojada e assim os mantém. Isso deve representar coerência com a obra do cineasta pregressa, mas Centro grita independência. Quando Azen a percebe e deixa seu filme evoluir pra vida que abdica, sua criação alcança o tamanho da homenagem e vai além.
Um grande momento
“tudo brejo – civilização fundada na pilhagem”