Crítica | Catálogo

Contratempos

A precarização do humano

(À plein temps, FRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Éric Gravel
  • Roteiro: Éric Gravel
  • Elenco: Laure Calamy, Anne Suarez, Geneviève Mnich, Cyrill Gueï, Lucie Gallo, Agathe Dronne, Mathilde Weill, Dana Fiaque, Sasha Cremaschi, Nolan Arizmendi
  • Duração: 88 minutos

Tudo é muito familiar ao assistir Contratempos, título francês aclamado no último Festival de Veneza. Vez por outra, nos pegamos incrédulos sem imaginar que histórias de vida assim também repercutem na Europa; muito mais do que imaginamos, têm exatamente a mesma ambientação aparente, a mudança é exclusivamente geográfica. Nem bem sucedida, muito menos miserável, o filme joga com essas vidinhas menos estreitas, mas também repleta de dificuldades diárias, que facilmente conseguimos referenciar uma parcela muito recheada da população. A jornada quase non stop de um trabalhador(a) brasileiro não fica nada a dever ao que é situado aqui, uma via crucis que diariamente ganha novo capítulo em cada um desses personagens que invadem trens, metrôs e corridas pela rua. Essa é a realidade. 

Julie é uma mulher divorciada, que cria os dois filhos sozinha, trabalha no centro de Paris morando em uma periferia distante, tendo conseguido o único emprego possível depois de anos inativa profissionalmente, o que significa ser arrumadeira em um hotel cinco estrelas, mesmo tendo faculdade e uma profissão prévia. Acompanhamos essa moça durante uma semana, ou melhor, A Semana. Mas nada é muito estranho para quem minimamente conhece o campo de trabalho para pessoas com poucas possibilidades de barganha. Suas dificuldades diárias são banais porque sabemos que ao lado dela, nos rostos anônimos dos que correm juntos, se apertam em conduções nada confortáveis, enfrentam o assédio e se desesperam com as impossibilidades sociais que se impõem a eles. 

Contratempo
Cortesia Festival Varilux

Éric Gravel está em sua segunda experiência em longas-metragens, e se mostra como um promissor talento em quem precisamos ficar de olho. Essa percepção de tratamento de uma realidade muito específica de uma periferia e a transformação dessa narrativa em um produto que se assemelha a um thriller, é uma escolha interessante. O desenvolvimento dessa narrativa de aparência simples é tornada cinematográfica, conduzindo uma história prosaica até uma espiral de tensão e desespero ininterruptos. Contratempos tem menos de 1 h e meia que parecem durar poucos minutos, porque é tudo contado com tanta fluidez quanto com velocidade, sempre acessando os momentos mais intensos de cada dia. Quando não está correndo para tentar melhorar a vida de quem a cerca, mesmo em repouso Julie está com as pilhas recarregadas, porém não consegue relaxar. 

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Para dar corpo a Julie, Laure Calamy. A atriz venceu o César ano passado por Minhas Férias com Patrick, uma comédia dramática despretensiosa que apresentou-a ao mundo. Um ano depois, parece que Calamy está em todos os lugares, e que bom que está. Suas ferramentas vão sendo apresentadas aos poucos, em sua carreira no geral e no filme em particular, nos colocando a par de uma artista especial. O que ela faz é dar humanidade a uma personagem que muitas vezes erra fortemente, mas que o valor de sua presença nos obriga a acompanhar novas perspectivas para suas ações. Ela tridimensionaliza os lugares por onde passa, sem agregar pontos negativos a si, embora cada decisão sua provoque o prejuízo de algumas pessoas que cruzam consigo. Sabemos do tanto de egoísmo declarado por suas palavras e seus atos, mas eles são justificados por uma atriz que dá forma ao seu corpo em um tom muito preciso – uma máquina em movimento. 

Contratempos
Cortesia Festival Varilux

Toda essa esquematização a respeito do proletariado, da carência do Estado ante os mais necessitados, a terceirização dos laços de afeto, a busca por um lugar ao sol em meio a uma ausência de oportunidades para todos, acionam em Gravel os dispositivos de um cinema mais popular, com proximidade ao público médio. Este verá em Contratempos um título emocionante, cheio de adrenalina em meio a uma situação tão corriqueira, levando-o a pensar sobre as próprias existências. Também trata-se disso em cena, um título que não cansa de avançar na estratégia de comunicar com extrema coerência seu objetivo. No centro desse quadro encontra-se um retrato cruel a respeito da precarização de tudo, dos meios de trabalho até a redescoberta da necessidade do amor, todos os elementos sucateados para melhor servir ao que nos desumanizar mais rápido. 

Um grande momento
Tentando entrar no hotel 

[Festival Varilux de Cinema Francês 2022]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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1 Comentário
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solitário
solitário
11/07/2022 11:48

Identifiquei também um foco do filme em mostrar a questão da mobilidade urbana, mostrando o quanto pessoas que moram distantes dos grandes centros sofrem para se deslocar e na falta de oportunidade que os subúrbios oferecem. Na geografia esses subúrbios são chamados de cidades dormitórios, o que é visivelmente evidenciado no filme, as cenas delas em casa são as mais breves e rápidas. Na entrevista de Julie ela é questionada sobre o quão distante sua casa é do seu futuro emprego. As transições/time-lapse mostram uma drástica mudança de paisagem, a imagem começa com um caos urbano e logo em seguida paisagens calmas e arborizadas porém com tons ESCUROS. As paisagens com tom mais escuro me remetem a um local pobre e sem oportunidades.

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