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Déo Cardoso fala sobre Cabeça de Nêgo

Dos festivais para a casa de todos

O filme Cabeça de Nêgo estreou na Mostra de Tiradentes em 2020, no último festival presencial antes da pandemia Covid-19 que viria transformar a realidade brasileira e mundial. Com uma mensagem forte de embate e resistência, é um filme que dialoga com o público juvenil, uma parte da sociedade que durante muito tempo foi pouco observada pela produção audiovisual brasileira, algo que ultimamente, com a descentralização e multiplicidade das produções, vem mudando.

O longa, dirigido por Déo Cardoso foi a grande estreia da Globoplay no Dia da Consciência Negra e foi exibido ontem na 8ª Mostra de Cinema de Gostoso, selecionado na Mostra Competitiva. Neste domingo (28), o diretor também participou do seminário “Do desenvolvimento à distribuição ‘O caso de Cabeça de Nêgo'”

Déo Cardoso falou um pouco sobre como é estar em uma das grandes plataformas de streaming do país, as influências do filme e um pouco sobre a criação e o projeto em uma entrevista para o Cenas.

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Cabeça de Nêgo
Marcos K Hirano

Cabeça de Nêgo mostra um momento muito potente na história, que é o das mobilizações estudantis, que tinham como pano de fundo, a melhoria da educação e das condições educacionais. Nos últimos anos a educação sofreu golpes severos e vários retrocessos, e enfrenta agora uma nova crise do ENEM, evidente nessa prova que acabou de acontecer. É um bom momento para o filme ser visto pelo Brasil. O que você acha de estrear agora no Globoplay?

A estreia no Globoplay representa, pra nós e pro filme, uma terceira etapa de alcance. Na primeira etapa, o circuito de festivais, o filme pôde chegar ao conhecimento da crítica e de um grupo seleto de pessoas. A chegada do filme em algumas salas de cinema pelo país, em outubro, aumentou mais o alcance e simbolizou, juntamente com filmes como Marighella, o gradual retorno do público às salas de cinema para ver cinema brasileiro. Agora o filme entra na maior plataforma de streaming do Brasil, com a força da marca Globo, para alcançar ainda mais pessoas. Estar nessa plataforma é entrar no mapa do cinema e do audiovisual brasileiro, debatendo questões importantes como a luta por uma educação inclusiva, diversa e antirracista. Nesse sentido, nós, equipe e elenco, estamos extremamente felizes com esse reconhecimento de uma plataforma como a Globoplay, que nos coloca num catálogo repleto de outros filmes fantásticos da história do cinema nacional.     

A raça é um dos pontos temáticos centrais do filme e nunca deveria ser tratado separadamente da educação no Brasil. A luta pelo respeito, representatividade e a representação negra, que era muito restrita no passado — você inclusive dedica o filme aos ícones do cinema, Adélia Sampaio e Zózimo Bulbul — hoje é mais diversa e natural no cinema. Houve uma mudança, mas ela parece estar sempre sob ataque. Saulo é um protagonista que marca sua posição nesse presente e essa transformação é definitiva. Como você vê isso chegando na casa de tanta gente agora?

O filme chega na casa das pessoas mostrando não só a força individual de quem toma uma posição antirracista e antifascista, mas acima de tudo a força coletiva que essa posição fomenta. A todo instante o filme faz pensar: de que lado você está? No plano final do filme, esse questionamento é explícito. O filme mostra que mesmo buscando o diálogo pacífico, se as garras do racismo estrutural violentarem um indivíduo, é o mesmo que violentar todos e todas. Haverá uma reação porque a história da civilização humana é assim. Ao longo da história, todo sistema que excluiu, e oprimiu o excluído, viu, no mínimo, focos de resistência contra-atacarem. Essa é uma das reflexões que o filme traz. 

Cabeça de Nêgo
Marcos K Hirano

A gente percebe que o filme é bastante referencial nesse ponto, não apenas Saulo cita Angela Davis como está lendo o livro dos Panteras Negras, e tem a citação no quadro branco, as imagens projetadas. Você está muito ali no filme também, né?

Sem dúvida. Tem muito do que li, aprendi e vivenciei. Boa parte das pessoas que mais admiro e que moldaram minha forma de pensar estão citadas ali. Tá faltando muita gente, mas ali é um bom resumo de referências. Mas o maior barato é que o filme não é autobiográfico. O filme é realmente baseado em alunos e alunas reais, que hoje estão na casa dos 20-25 anos, e que leem Angela Davis, Malcom X, Dr. Silvio de Almeida, Djamila Ribeiro, que ouvem Tupac, Racionais Mc’s, Djonga, etc. Isso que é incrível. Nossas referências se retroalimentam em várias gerações. 

Queria falar um pouco da parte técnica agora. Você consegue fazer um jogo muito interessante entre o que os adolescentes criam e o que você filma, mesclando o tradicional a inserções de vídeos de celular. Começa numa despretensiosa corrida pela rua, passa pelas denúncias de Lucas e chega às imagens mais fortes do filme. Me fala um pouco sobre seu processo de criação. 

Acho que todo processo de criação é misterioso. Há a mescla do lado direito e do lado esquerdo do cérebro. Racionalidade e intuição lúdica. Confesso que essa mescla entre a estética clássica cinematográfica, e o hibridismo anárquico dos registros de celulares foi uma das últimas ideias que tive na escrita do roteiro. Minha grande questão era: se a juventude contemporânea tem o celular como uma extensão do braço e do cérebro, como esse dispositivo seria usado em momentos de tensão crescente como a trama retratada no filme? O resto foi muito orgânico. Apesar de admirar esse tipo de pesquisa, não cheguei a aprofundar nenhuma teoria da imagem sobre isso antes da escrita do roteiro. Meu processo criativo é muito em cima de observações do cotidiano. Tenho uma arte fundamentada no realismo, no documental, que talvez venha da minha paixão pela fotografia e pelas pessoas em geral. 

Outra coisa que me deixou muito vidrada em Cabeça de Nêgo foi a expressividade do Lucas Limeira. O olhar do Saulo fala um monte de coisas. Como foi o processo de seleção de elenco e todo o processo de preparação e gravação?

O Lucas é uma pessoa incrível que, já nos primeiros dias de ensaio, foi se tornando um grande amigo e assim o é até hoje. Cheguei a ele através de dois amigos, em situações distintas. Pedi um teste só pra confirmar uma certeza: a força de sua expressividade mesmo quando não está falando. Criei um personagem que é, ao mesmo tempo, tímido e atuante. Reservado, mas poderoso. Acanhado, mas articulador. A missão seguinte era buscar alguém que pudesse dar vida a isso. E o Lucas não só deu vida, como trouxe elementos ainda mais complexos. Eu não esperava, por exemplo, essa força no olhar que ele tem. O processo de seleção de elenco foi muito caprichado e cheio de boas atmosferas. Eu buscava as cores que só as personalidades da periferia de Fortaleza poderiam me dar pra pintar esse quadro: a ética própria, a política genuína dos gestos, das gírias e da resistência. Nossos ensaios foram marcados por vivências, leituras de textos de ícones negros, negras e indígenas (muitas delas homenageadas ao longo do filme), e isso acabou exalando na tela.

Agora, pra finalizar, brincando de prever o futuro, como você acha que o seu filme, principalmente esse retrato que ele faz da educação no Brasil, vai ser visto daqui a 10 anos?

Eu particularmente espero que daqui a 10 anos esse filme esteja datado, mas visto como inspiração para futuras reivindicações que visem melhorias socioeconômicas para pessoas historicamente oprimidas e excluídas. Espero que, daqui a 10 anos, uma pessoa jovem, especialmente preta ou indígena, veja o filme e diga: “se essa galera representada no filme não tivesse lutado tanto por melhorias, hoje não estaríamos em uma escola tão boa e includente na vida real”. Porque o filme é inspirado em pessoas reais, do passado e do presente, que saíram da zona de conforto em busca de uma melhoria coletiva. 

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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