Crítica | Festival

Dias Melhores

O conto de dois párias que se acolhem e invariavelmente se apaixonam

(少年的你, CHN, HKG, 2019)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Derek Tsang
  • Roteiro: Lam Wing-Sum, Yuan Li, Xu Yimeng, Nan Chen
  • Elenco: Zhou Dongyu, Jackson Yee, Fang Yin, Ye Zhou, Yue Wu, Jue Huang, Yifan Zhang, Yao Zhang
  • Duração: 135 minutos

Toda sorte de gatilhos estão presentes na história de amor e desilusões Dias Melhores, que integra a seleção do Festival do Rio no Telecine. Dono de um cinema mais pop, Derek Tsang é o autor por trás desse filme, que foi o representante da China na última edição do Oscar, concorrendo na categoria de Melhor filme Internacional. Tsang inclusive é o primeira cineasta de Hong Kong — terra de mestres como Wong Kar Wai — a ser indicado ao Oscar.

Tem suicídio, bullying, slut shaming, violência física, sexual e emocional a partir da experiência de exílio e abandono que experimenta a dupla central. Adaptado do romance “Song and Beautiful”, de Jiu Yuexi o filme aborda a conexão profunda que se estabelece entre Chen Nian (Dongyu Zhou) e Bei, o Liu Beishan (Jackson Yee), e vai delineando, entre planos e contraplanos plasticamente arrojados, uma certa formação dos territórios afetivos onde suas identidades vão se reconfigurando. Entre as muitas lágrimas derramadas, o companheirismo faz florescer um romance entre os dois, ela uma menina simplória e estudiosa e ele um delinquente. Juntos, vão formulando estratégia de resistência aos valores impositivos de uma sociedade que mói as pessoas para selecionar apenas as que têm mais chance de êxito.

Dias Melhores
Divulgação / Well Go USA

“Você protege o mundo e eu te protejo”

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Bei firma um acordo com Chen Nian onde será seu protetor para que ela não corra riscos e sofra com a perseguição dos colegas de classe enquanto se prepara pra prestar o vestibular — e, a partir, desse contato inicial, eles identificam dores semelhantes.

Romance com influências de Dias Selvagens e Anjos Caídos (de Kar Wai), do anime Your Name e também de filmes de Tsai Ming-liang que exploram a solidão dos que estão a margem, como Cães Errantes, esse Dias Melhores apresenta uma cidade diurna que é tristonha, cinza e chuvosa, mas que se ilumina com as luzes neon nas cenas noturnas onde Chen Nian e Bei podem ficar a sós.

Corrosivo no sentido de apertar o botão da comoção com insistência ao longo das sequências onde Chen Nian sofre humilhações cada vez mais graves nas mãos das meninas, especialmente da patricinha Wei Lai, Derek Tsang anda na corda bamba mas não cai no maniqueísmo que poria tudo a perder. A opção por inclusive não mostrar, na sequência inicial, é coerente e por mais longas e dolorosas que sejam as cenas onde Chen Nian está sendo espancada ou que Bei apanha em brigas de gangues, elas se espelham nos encontros que eles têm em casa para tratar das feridas físicas que também os marcam psicologicamente.

Dias Melhores
Divulgação / Well Go USA

“Boas pessoas recebem bom karma”

O filme não questiona o porque de Chen sofrer bullying, mas sim escava o sofrimento dela e o de Bei como uma forma deles se encontrarem, juntos se resignarem e lutarem para superar toda a dor. E o laço que eles solidificam é ilustrado numa das cenas mais bonitas de Dias Melhores, quando ela está estudando e ele lê a citação de Oscar Wilde (da obra “O Leque de Lady Windermere”): “Estamos todos na sarjeta mas alguns de nós miram as estrelas”.

Perseguir os sonhos é doloroso quando se tem que sobreviver todos os dias. Chen pergunta a Bei se ele sente dor e ele sabe exatamente que ela não se refere aos cortes, contusões e olho roxo ao passo em que se sente confortável para falar com ele sobre a mãe endividada, sobre como precisa entrar na universidade em Pequim para poder viver em paz.

Dias Melhores
Divulgação / Well Go USA

“Crescer é como mergulhar, não pense apenas feche os olhos e vá”

Incomoda como a violência progride de maneira escalonada em contraponto a fragilidade e passividade de Chen. Ainda assim, Dias Melhores tem temáticas universais e que o tornam ainda mais assimilável. A competitividade na sociedade chinesa ecoa em várias sociedades, como a pressão para passar no vestibular, não fracassar e vislumbrar um futuro melhor para si e sua família.

Planos inspirados como o de Chen Nian colocando seus pedidos em um dos balões com velas – que encapsulam a felicidade e os desejos de uma vida melhor menos ordinária –; chegando na escola enquanto os outros estudantes rasgam as provas e jogam pelos ares. Ou os risos e lágrimas que se confundem e se refletem em contraplano através do vidro de proteção da prisão fortificam o longa.

Mesmo sendo desnecessária a cena pós créditos que cria uma cisão com o final aberto, Dias Melhores se mantém qualitativamente bem, ainda que pudesse ser melhor, mas é compreensível a necessidade que Derek Tsang tem de passar uma mensagem positiva e panfletar sobre a importância de medidas governamentais no combate ao bullying nas escolas. O que é curioso é que, mesmo acenando com essa perspectiva panfletária, o filme enfrentou a censura do governo chinês que dificultou sua exibição no país.

Em alguns momentos, a música pode ser ostensiva, mas se justifica dado o tom bastante melodramático da narrativa, quando como é revelado o conteúdo da carta que Chen Nian redigiu para a prova final dos exames para si mesma dali a 20 anos. O senso de perda está ali e desencadeia a catarse.

Um grande momento
O mesmo corte de cabelo curtinho

[Festival do Rio no Telecine]

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Lorenna Montenegro

Lorenna Montenegro é crítica de cinema, roteirista, jornalista cultural e produtora de conteúdo. É uma Elvira, o Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e membro da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). Cursou Produção Audiovisual e ministra oficinas e cursos sobre crítica, história e estética do cinema.
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