- Gênero: Drama
- Direção: Ryûsuke Hamaguchi
- Roteiro: Ryûsuke Hamaguchi, Takamasa Oe
- Elenco: Hidetoshi Nishijima, Tôko Miura, Reika Kirishima
- Duração: 179 minutos
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A história do Japão, tradicionalmente, é feita da manutenção de suas perdas, que se intensificaram ao menos desde a Segunda Guerra Mundial; essa base de construção mortuária, de ressignificações constantes com o espectro da ausência física, é material dramático para autores como Haruki Murakami, que tem tido debruçamento constante no cinema. Norwegian Wood e Em Chamas abriram caminho para Drive my Car, que se embrenha nesse material com outras camadas de sutileza, tentando circundar o que resta depois da partida, quais são as referências a que precisamos nos dedicar na próximas paragens, e em como reflorescer enquanto seres viventes.
Ryusuke Hamaguchi é um jovem cineasta japonês, mas com filmografia já extensa. Felizmente está sendo descoberto graças ao excepcional 2021 que teve (além desse, fomos presenteados também com Roda do Destino, a estrear proximamente), e aqui ele não só pretende desfolhar a prosa de Murakami, mas igualmente expandir o olhar que já vinha introduzindo em debates cinéfilos através de sua obra, com essa peculiar lida do povo japonês com a perda, física e emocional, muitas vezes uma refletindo a outra em simbolismos verbais, muitas vezes. Mas as qualidades estruturais e imagéticas do autor não podem ser condimentadas, como se sua visão fosse atrelada apenas ao poder da retórica.
Trata-se de um filme onde a arte mais uma vez encontra uma forma redentora de mobilizar seus personagens, mas aqui esse apaziguamento não é explícito, e não avança muito mais que pelas entrelinhas. O que importa para Hamaguchi não é apenas a palavra falada, mas a ação conduzida, nem sempre compreendida, mas que afinal têm suas justificativas e motivações. Quando Yûsuke assiste a uma cena protagonizada pela própria esposa que originalmente não deveria ter visto, ele entra em uma linha de compreensão que acaba por desaguar em um sentimento de culpa que é metabolizado pelo corpo – ele não pode mais dirigir por um problema de visão, logo ele que ama dirigir. Não é o filme que sentencia o personagem, mas o próprio que se coloca em posição martirizada pelo testemunho indevido.
A imagem vista nessa mesma cena, através de um espelho que reflete também a própria imagem de quem assiste, revela o rumo do filme – eternamente em deslocamento, tentando juntar os cacos de inúmeras ausências. Não haverá o corpo físico, e na memória, a imagem que se desloca da escuridão das palavras para a clareza das imagens que se quer soterrar. A partir delas, reorganizar as perdas: se vai o físico, se vai o prazer, se vai a história – fica uma obrigatória necessidade de mudança de estado. Viver é perder o controle a cada momento, e Yûsuke precisa entender que não está mais no comando; se conduzir é um ato de domínio das próprias ações, entender que o outro lado não configura como derrota é uma necessidade de autoconhecimento.
Hamaguchi filma esse manancial de derrotas costurando cada passagem ao espírito de Anton Chekov, mais precisamente de “Tio Vanya”, a peça montada no processo do longa. É sabido que o protagonista do texto é um homem que decai na própria mediocridade e cuja falta de realizações se transformou em aguda frustração. O protagonista de Drive my Car foge de Vanya porque sente o abismo próximo de si, e ao recusar a queda, segue em sua narrativa particular negando os sentimentos que Chekov incumbe; o luto que reside em sua jornada é renegado em atividade, mas está à espreita há muito mais tempo do que o filme flagra.
Centrar a narrativa em Hiroshima também não é casual. Assim como fez Radu Jude em seu último Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental com as ruas de sua Romênia, a cidade afetada pelo horror atômico aqui é vista com placidez e até certa beleza, mas acima de tudo com normalidade, lavando de sua atmosfera qualquer referência estética mais demarcada. O que existe em cena é um espaço de reconstrução não apenas material, mas principalmente sensorial. Através da tranquilidade de seus espaços, a melancolia de sua paisagem só ameaça ser incluída por um protagonista cujo amparo é compulsório. Seu autor a filma com apuro pelo exterior, em consonância com a liberdade que filma através do ato de dirigir; controle e condução, retiradas à força para que uma nova configuração espacial surja.
A câmera de Hamaguchi segue esse protagonista e seu consequente envolvimento com uma personagem que ele renega reiterando o interesse pelas imagens que eles produzem, o cigarro fumado junto, a neve dividida no clímax, as estradas constantemente rasgadas pelo vermelho, juntos porém separados. Quando filma a peça, o diretor consegue o que poucos sequer arranham (Polanski, um deles), que é tornar cinematográfico e atraente o espaço cênico referente ao palco. Solucionando esse espaço ingrato na tela com inteligência e certo apavoramento, uma dose de angústia, seu ápice é registrado quando há enfim um conflito externo que abarca esse local do sagrado, na arte. As portas fechadas, inúmeras mãos estabelecendo o destino de um homem, a posição da câmera, distanciada porém cúmplice dos eventos, é um momento onde os significados espaciais encontram sentido para além das palavras, uma característica do diretor.
A despeito da colocação verbal, de sua construção em revelar cada sombra de um passado doloroso e de rir dos processos elípticos por quais as grandes narrativas se agarram, reiterando discursos após eventos longínquos do espaço-tempo, Drive my Car também é uma obra de criação visual no que concerne sua estruturação fílmica. Há um jogo de aproximação gradual e lenta entre dois polos de entendimento narrativo que são filmados sempre à distância enquanto se repelem, para enfim nos aproximar daqueles corpos e daquelas vivências. É uma jornada longa de auto conhecimento mas também de conhecimento mútuo, que parte de uma recusa inicial de um protagonista para com a própria história até chegar na necessidade de abraçar o outro, e assim sentir um conforto muito genuíno com sua verdade adormecida.
Com uma longa abertura amplamente justificada por uma necessidade de entendermos a fisicalidade de seu protagonista, não apenas através da oralidade de seus relatos, o filme tem em seu atores centrais (Hidetoshi Nishijima e Tôko Miura) uma verdade rara de traduzir em cinema – não é uma simples redução naturalista, é um olhar quase documental diante de um material ficcional, sem enxertos de qualquer ordem. Nishijima em particular atravessa uma longa trajetória em cena indo a extremos emocionais traduzidos com precisão em um rosto de difícil análise por não contribuir para sua tradução. Provavelmente era essa a intenção de Hamaguchi, naturalizar o impalpável… e fazer do ressuscitamento em vida algo tão simples de materializar.
Um grande momento
Interrompendo o ensaio