Crítica | Festival

Cervejas no Escuro

Arte aos que subvertem

(Cervejas no Escuro , BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Comédia, Experimental
  • Direção: Tiago A. Neves
  • Roteiro: Tiago A. Neves
  • Elenco: Edna Maria, Sandro Mandú, Erick Marinho, Rinaldo José, Hérica Antas Diniz, Fernando Teixeira
  • Duração: 82 minutos

Tiago A. Neves, cineasta de incursões no melodrama em sua voz curta metragista (Remoinho) não se contenta em reproduzir seu talento na estreia em longas. O resultado é Cervejas no Escuro, um arriscado experimento que abraça muitas ideias, algumas delas contraditórias, e realiza o filme mais curioso da safra 2023 da Mostra Aurora, em Tiradentes. Descolando o filme da mostra, o que fica de questionamento é a respeito da radicalidade do diretor, disfarçado de assertividade de gênero. De aparência simples e despojada, o filme tem camadas de observação que filtram dele sua possível precariedade para discutir trabalho, memória, a própria precarização, e isso tudo mirando nas artes, em uma forma de homenageá-la. 

Da cena contemporânea mundial, Cervejas no Escuro herda a tendência de homenagear o cinema, mas aqui é tudo muito específico demais para colocar no mesmo diálogo direto com Spielberg, Cuarón e Del Toro. Mas é interessante que, vivendo nessa zona neutra de amostragem, Neves consiga transpor o que vai dizer para outros olhares, sendo autêntico com uma inquietação particular. A homenagem possível então pede uma compreensão estética para que possamos alcançar a essência do que está sendo dito; é hora de mirar não apenas na frente das câmeras, como principalmente atrás delas. Então tudo se encaixa por estarmos diante de uma ideia de bastidores, deixando o lugar no hibridismo do documentário falso – ou quase. 

É do amor pelo que se faz que Neves consegue criar uma alegoria conectada com o que está lidando. Nenhum dos personagens em cena de Cerveja no Escuro lida com o cinema de uma maneira diferente; é visceral, apaixonado e intenso. Compreender essa paixão é quase um desperdício de elemento, porque a narrativa é composta por um dado de estranheza verdadeira diante daquele ofício. São pessoas que se uniram em torno de uma ideia que floresceu de maneira igualmente selvagem, ao menos entre os quatro protagonistas, que se doam de maneira fora do comum por aquilo. É sim necessário entender que estamos diante dessa força desconhecida e avassaladora, do qual não precisa encontrar explicação. 

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Além do cinema propriamente dito, Cervejas no Escuro não deixa de falar da literatura e principalmente do teatro, até pelas características do projeto. Temos uma trupe como protagonistas, que se comporta como uma companhia teatral mambembe, e que o filme olha com desvelo; são artistas de múltiplas ordens, mas essencialmente são profissionais da arte. Paralelo à evocação de um autor, como Brecht, ou de um gênero, como o ‘vaudeville’, Neves corporifica essa ideia do teatro em cena para com a formação de sua equipe, que também é elenco e que também é platéia. Estão prementes em sua formação uma ideia de equipe, e congraçamento pela estrutura do labor, que está em primeiro lugar. 

Quando passa a investigar a História dos seus eventos, e a cartografia plana do passado, Neves não se afasta da produção que almeja deliberadamente. Suas ações também configuram um encontro com a palavra escrita, aquela que nos permite o reencontro com nossa inspiração. É um passo da direção do documento – que de muitas formas complementa a experiência de Cervejas no Escuro, enquanto obra – que não deixa de investigar também a ideia de conjugar mais uma vertente possível da arte, parte integrante do interesse ali. Se essa ideia acaba por parecer um apêndice desencontrado, é um risco que o realizador compreendeu necessário para criar um elo generalizado de suas múltiplas formas.

É nesse estado de consonância, de afetos, de gestos e de posturas, que salta na frente de Cervejas no Escuro seu potencial de comunicação, ainda que as joias do formalismo não estejam alheias ao evento cinematográfico. É uma pulsão pela energia que não se deixa afastar da estrutura, onde Neves inclusive se referencia de maneira sutil. É a passagem de bastão da primeira cena, um plano-sequência de matizes naturalistas, que o cineasta pula o título propriamente dito da obra; do drama ao gatilho para a narrativa, do gatilho para a farsa, e assim desdobrando a obra. É um encontro que propicia o casamento desses dois olhares do seu diretor para um objeto de reflexão – sua obra, em construção e ainda jovem, e o olhar terno para o que ele mesmo realiza, se vendo em profunda comunhão com seus tipos e eventos. 

Um grande momento
A cena do beijo

[26ª Mostra de Cinema de Tiradentes]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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