(Wonder Woman 1984, EUA, GBR, ESP, 2020)
- Gênero: Ação
- Direção: Patty Jenkins
- Roteiro: Patty Jenkins, Geoff Johns, Dave Callaham
- Elenco: Gal Gadot, Chris Pine, Kristen Wiig, Pedro Pascal, Robin Wright, Connie Nielsen, Lilly Aspell, Amr Waked, Kristoffer Polaha, Natasha Rothwell, Ravi Patel, Oliver Cotton, Lucian Perez, Gabriella Wilde
- Duração: 151 minutos
Como mulheres que somos, nunca, jamais, iremos negar a relevância de ter nas telas do cinema uma das mais importantes super-heroínas dos quadrinhos. É importante que as meninas, as adolescentes e as mulheres se vejam nesse universo dominado por figuras masculinas. Foi assim que em 2017 muitos dos deslizes de Mulher-Maravilha foram desculpados, mas eles deveriam ser corrigidos e não aprimorados. É frustrante que, em pleno 2020, a representatividade ainda seja algo tão complicado para a DC Comics, que a figura da mulher ainda seja tão incompreendida. O que acontece com Mulher-Maravilha 1984 é inexplicável e indesculpável. E não precisamos falar apenas de contexto, o filme em si é um emaranhado confuso, mal feito e mal desenvolvido.
Tanto que é até difícil saber por onde começar, então vamos seguir a cronologia. No melhor estilo fan-service, o longa, dirigido mais uma vez por Patty Jenkins e trazendo novamente Gal Gadot como a Princesa Diana de Themyscira, volta à ilha para mostrar as amazonas que fizeram tanto sucesso no primeiro filme. Olha lá o sinal amarelo: MM84 exalta aquela estrutura patriarcal na qual esse nosso mundo está inserido, a de competição de arena, onde os homens geralmente exibem sua superioridade para serem admirados por outros homens que acompanham a jornada extasiados. O senso não é de superação individual, mas de disputa. A ideia é dar o mote principal do filme, a prevalência da verdade, mas já vem com o sinal trocado.
A conexão entre as passagens não é o ponto forte do roteiro, aliás, se há alguma coisa realmente frágil no filme, além da própria heroína, é o roteiro. A passagem do tempo justifica o título e chegamos aos anos 1980. A intenção não é de todo ruim: trazer ao cinema a aura do seriado televisivo de sucesso da década anterior. A ambientação é funcional, principalmente neste início, com muitas cores, ombreiras, pochetes, mullets e polainas que marcam o ambiente. Com uma aura assumidamente kitsch e efeitos que deixam a desejar, a cena do roubo talvez seja a melhor sequência de ação de Mulher-Maravilha 1984.
A ação vai se construindo de uma maneira destrambelhada, sem muita preocupação com conexão, os eventos se sucedem com amarrações forçadas, como tropeços. Personagens são apresentados aleatoriamente e é muito fácil saber qual a intenção para eles na trama, mas ao mesmo tempo não há espaço para que se encaixem. Tudo muito próximo a um episódio do seriado da ABC, mas um pouco mais atrapalhado. Jenkings parece meio sem foco, assim como sua Diana, e o filme não consegue encontrar um caminho para seguir, deixando assim todos os defeitos e equívocos expostos. O vilão Maxwell Lord é de um desinteresse sem igual. Monótono, sem liga e mal desenvolvido, ele não consegue transmitir mensagem nenhuma. Mulher-Leopardo, uma das maiores e mais antigas arqui-inimigas da Maravilha (aqui com uma origem completamente diferente da dos quadrinhos), apesar do esforço de Kristen Wiig, também não recebe a atenção merecida.
A ação, coitada, também carece de foco. Se recebe muita atenção nos primeiros momentos na ilha e no shopping, quando o filme alcança a trama da Pedra dos Sonhos é como se pisasse no freio e desaparecesse por um bom tempo. O filme vai entrando num espiral sentimentalóide e se entrega ao que há de mais baixo e nocivo nesse esquema perpetuado pela mitologia jenkiniana (que desta vez nem a desculpa de não ter participado do roteiro tem mais): o romance entre Diana e Steve. Não bastava só um “eu te amo”, tem que ter um filme inteiro para aprimorar o desastre.
É preciso falar aqui do modo como a definição de posturas é determinado pelo roteiro de Mulher-Maravilha 1984. Temos duas personagens femininas relevantes: Barbara Minerva, uma doutora em zoologia, geologia, gemeologia, litologia e criptozoologia, e Diana Prince, uma super-heroína imortal. Quando ambas têm acesso à Pedra dos Sonhos, a primeira pede para ser mais bonita, legal e descolada; a segunda pede o seu homem de volta. O sinal nem é amarelo, é vermelho mesmo. Mais do que isso, focando especificamente na Maravilha, como aceitar que ela cogite deixar de lado a segurança do mundo inteiro para não perder o seu homem? Pior, o filme vai se construindo para que Steve assuma o papel de protetor da mulher, do homem que, em determinado momento, defina o rumo da história. Ele e sua bandeja de prata são muito mais efetivos do que todos os poderes da protagonista.
Não que se esperasse uma redenção feminista após aquilo que se viu em 2017, com um filme bastante problemático neste quesito, principalmente com a questão do amor romântico ainda turvando a visão das mulheres com alguma voz de criativa e com tantos homens em cargos chave, mas nada preparou para isso. Podemos voltar às cenas no shopping, com mulheres sendo assediadas, ou à transformação de Barbara em vilã, com música grave e o espancamento de um assediador. Quando se opta por jogar Diana num mundo coalhado de machismo, um machismo muito mais escancarado como o dos anos 1980, e se escolhe tomar um caminho não reativo ou equivocado, isso é gravíssimo.
É preciso falar que o discurso é sim relevante, muito mais do que qualquer outra coisa. Lindo que uma super-heroína esteja nas telas, lindo que ela possa se apaixonar e amar, lindo que ela possa ser sozinha, lindo que ela possa fazer o que ela quiser. É sobre isso no final das contas, mas é sobre responsabilidade também. E não é só responsabilidade na ficção, a responsabilidade da personagem que tem que tomar essa ou aquela decisão, mas daqueles que estão construindo, reafirmando, instigando e enaltecendo imaginários e padrões que trouxeram a humanidade à cristalizações e padrões que precisam ser ultrapassados, imaginados de formas e em formas diferentes.
Mas é isso. Mulher-Maravilha 1984 é uma decepção pasteurizada. Perdida no cinema que tenta produzir, Jenkins também se perde no discurso. Em sua sopa, lá pelas tantas e sem muito a dizer, tenta voltar à ação entretenedora (já que poderia servir para isso), resgatar sua heroína e salvar o filme. Porém, as cenas de ação seguem constrangedoras, como as das crianças jogando bola no meio da estradas ou a luta com a Mulher-Leopardo. E não há muito o que dizer da imensa fala ilustrada de Diana, com direito a flashbacks bem mal colocados. Não fosse pelo Steve tentando se ambientar aos anos 1980 e a homenagem no final, nada sobraria.