Crítica | Catálogo

Pajeú

Questões urgentes sobre o esquecimento

(Pajeú, BRA, 2020)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Pedro Diogenes
  • Roteiro: Pedro Diogenes
  • Elenco: Fatima Muniz, Yuri Yamamoto
  • Duração: 74 minutos

Ao serem encarados com a possibilidade do desaparecimento e do abandono do alheio, os personagens acessados em Pajeú não negam o medo da concretização do mesmo, porém não percebem a armadilha jogada em sua direção por Pedro Diógenes, diretor e roteirista, que está exatamente utilizando essas perguntas para colocá-los em paralelo ao riacho do título, também ele uma vítima do esquecimento posterior a um projeto de destruição. Como em Inferninho, seu longa anterior em parceria com Guto Parente, o autor tenta montar um mosaico sentimental sobre desvalidos em busca do encontro, aqui fugidios de identidade – o que existem são breves encontros, fugazes, mas que clamam por permanecer.

Diógenes, que já tem um olhar muito apurado para o fantástico, envolve seu filme em uma moldura de pesadelo, atiçando uma protagonista sedenta por respostas rumo a incertezas cada vez mais apavorantes, afinal tudo está desaparecendo, e não apenas o rio que ela investiga, seu entorno também está, e Maristela está absorvendo essa melancolia amedrontada. Como parte integrante desse estudo de gênero inserido no longa, o diretor transforma esse medo de Maristela em vetor para a entrada de uma criatura que apavora nos sonhos e descende desse seu campo de pesquisa com o esquecimento do rio que dá título ao filme.

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Em paralelo a essa estrutura narrativa mais concreta, o filme desenvolve uma ponte com uma espécie de mockumentary (documentário falso) onde Maristela entrevista pelas ruas de Fortaleza transeuntes a respeito do reconhecimento da existência do Pajeú, e também profissionais ligados a diferentes áreas acerca do mesmo tema. Nesses segmentos, o filme se explicita e acaba por arregaçar suas intenções, que já são explícitas no contexto narrativo. Se isso drena um pouco da força imagética do filme e diminui sua delicadeza, aumenta uma verve social da produção que raras vezes funciona no cinema nacional, mas que o diretor não deixa de injetar substância.

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A montagem de Parente e Victor Costa Lopes trata de nos fazer embarcar numa possibilidade contínua de delírio e realidade, sem nunca sublinhar exatamente o quê e absorvendo uma na outra, que nos faz duvidar sobre a certeza a respeito do deslocamento de algumas imagens; em que contexto elas foram encadeadas?, é uma pergunta feita constantemente durante a projeção, que com isso oxigena o projeto como um todo, servindo como sopros de instabilidade constante que ajudam a criar na narrativa justamente o que se pede dela, o descontrole entre o concreto e o abstrato em flerte permanente.

Surgido com a Alumbramento, movimento coletivo cearense criado há mais de 10 anos por Diógenes, Parente, Luiz Pretti e Ricardo Pretti, o diretor está na estreia de maneira solitária na direção, mas parece que aquela experiência nunca saiu dele, o forjou como cineasta – e na verdade, aos outros três também. Sua visão criativa de cinema ainda reverbera o tanto que o coletivo influenciou na sua obra, e Pajeú guarda doces semelhanças com os projetos nos quais todos se envolveram, nunca parecendo um decalque sem vida. Seu olhar bucólico para uma situação de extermínio (coletivo e particular) deixa clara sua liberdade autoral para com o cinema brasileiro vigente na atualidade.

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Como é de praxe na visão sensível de Diógenes, toda a empatia requerida pelo longa em questões macro ou micro (o esquecimento tanto do que é material quanto do que é emocional) advém de pulsantes relações humanas. O olhar sempre compenetrado de Fátima Muniz em cena traduz o seu gradual mergulho em uma realidade que a arrebata inadvertidamente, e seu envolvimento pessoal com Yuri Yamamoto é a cereja do bolo para essa absorção empática. Ambos imersos no material e na obra propostos, suas presenças ambivalentes entre a melancolia e a ebulição esfuziante refrigeram cada cena do filme com a dose adequada de paixão e intensidade.

Se ao roteiro do próprio Diógenes ainda possam exalar dúvidas estruturais, a sua direção não guarda dúvidas quanto à excelência, e ao quanto os riscos produzem obras vivas e interessadas tanto nos acertos quanto nos erros. Como outros longas merecidamente celebrados da contemporaneidade do cinema brasileiro, Pajeú transpira uma intenção contínua de reverberar. Tanto nas criações de Filipe Arara, Natalia Parente e Themis Memória para a arte nos catapultam para o interior do projeto, quanto a sensibilidade do diretor nos faz aterrissar nesse universo com doçura e segurança, mesmo que o terreno seja propositadamente desconhecido.

Essa é uma característica da geração e dos companheiros de Pedro Diógenes, do cinema que ele se imbuiu de plantar e regar. Uma decupagem acima de qualquer suspeita, coloca um projeto inteiro na margem da insegurança narrativa, que o autor habilmente conduz com mãos impecáveis – o plano milimetricamente dividido entre Fátima e Yuri seduz, inebria, apavora e entristece, tudo a um só tempo. No temor pelo apagamento coletivo, das coisas e dos seres, o diretor reflete também sobre a matéria inabalável que nos leva ao autoesquecimento, quando simplesmente aceitamos o fim. A câmera enfrenta o mal, Pedro Diógenes não se deixará apagar.

Um grande momento:
“Vem pra mim”

[9º Olhar de Cinema – Mostra Internacional de Curitiba]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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