Crítica | Festival

Aquilo Que Você Mata

Multiplas versões de si

(The Things You Kill, FRA, POL, CAN, TUR, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Alireza Khatami
  • Roteiro: Alireza Khatami
  • Elenco: Ekin Koç, Erkan Kolçak Köstendil, Hazar Ergüclü, Ercan Kesal Director-screenwriter: Alireza Khatami
  • Duração: 114 minutos

À primeira vista, o thriller psicológico Aquilo Que Você Mata, de Alireza Khatami, indica um caminho simples, um filho que se indigna com a morte da mãe. Porém, vai se tornando mais elaborado à medida em que a emoção deixa de ser a motivação principal do professor universitário Ali, que decide agir usando Reza, seu jardineiro. Cada nova ação do filme está tecida em uma trama mais densa, feita de heranças e violências legitimadas ao longo do tempo.

Desde o início, o diretor não está interessado em um suspense convencional. A tensão é paciente, mais voltada para o desconforto interno do que para a expectativa de ação. A paisagem contrasta com a sensação de confinamento psicológico que aprisiona os personagens. É nesse cenário que o longa afirma que uma pessoa sempre pode ser várias. Dependendo das circunstâncias, das pressões e do contexto, existem versões múltiplas de um mesmo ser; e Ali e Reza são exemplos dessa multiplicidade.

A relação entre os dois, marcada por hierarquia e distância, é constantemente redesenhada. Cada situação revela um novo papel que desempenham: ora cúmplices, ora adversários, ora espelhos deformados um do outro. Essa fluidez identitária não é apresentada como exceção, mas como parte da própria lógica de sobrevivência num mundo onde a estabilidade é uma ilusão.

A linguagem em Aquilo Que Você Mata funciona como mais uma camada dessa instabilidade. A mescla de idiomas, as pausas carregadas de significado e os silêncios prolongados deixam de ser recursos formais e se revelam negociações de poder, barreiras emocionais e códigos invisíveis da convivência. Khatami entende que as palavras não comunicam apenas ideias, mas também posicionamentos, e constrói boa parte da tensão a partir dessa oscilação.

Pausas oníricas surgem discretas ao longo da narrativa e pontuam a história sem criar divisões rígidas entre real e imaginário. Elas funcionam como pequenas rachaduras na superfície controlada do filme, permitindo que surjam imagens e sensações que não cabem na linearidade dos fatos. Não explicam nem adiantam nada, mas provocam desconforto.

O elenco, em especial Ekin Koç e Erkan Kolçak Köstendil, ancora essa complexidade com atuações cheias de nuances. O professor de Koç não é herói nem vilão, mas alguém dividido entre a busca por justiça e a perpetuação da violência herdada. O jardineiro, interpretado com uma ambiguidade interessante por Köstendil, resiste à simplificação. Sua presença desconcerta porque está sempre em transformação, adaptando-se a cada situação.

Visualmente, o filme amplia a sensação de inquietude. As paisagens vastas e imponentes criam um contraste quase irônico com o drama íntimo dos personagens, como se a história deles fosse apenas mais um capítulo numa geografia acostumada a ciclos de violência e silêncio. Khatami filma o espaço como memória, carregando cada plano de uma herança que parece impossível de apagar.

Aquilo Que Você Mata é, no fim das contas, sobre o peso de viver sob um legado que molda gestos, palavras e identidades. É um filme sobre rupturas que se insinuam, mas raramente se completam. Khatami entrega uma obra ambiciosa e inquietante, que não oferece saídas fáceis, onde romper ciclos exige muito mais do que um ato definitivo. É preciso enfrentar a herança que habita não só as estruturas, mas também as diferentes versões de si mesmo.

Um grande momento
O conceito de traduzir

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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