Crítica | Festival

Transe

Um filme de época

(Transe, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Carolina Jabor, Anne Pinheiro Guimarães
  • Roteiro: Anne Pinheiro Guimarães, Carolina Jabor
  • Elenco: Luisa Arraes, Johnny Massaro, Ravel Andrade, Matheus Macena, Ana Flávia Cavalcanti, Bela Camero, Pastor Henrique Vieira
  • Duração: 75 minutos

Temos hoje ciência de que vivemos em bolhas, e que elas se comunicam apenas e quando nós queremos – se nos mantivermos alheios à movimentação não tão perto de nós, perdemos a grande movimentação que pode definir eventos cruciais para nossa realidade. Transe é uma reflexão sobre a mudança que qualquer grupo adquire ao ter contato com uma tragédia não-programada, em que nosso universo particular não se comunica com o resultado dos eventos que nos afetam. Os de caráter particular e os de ordem pública, o filme não impede de mostrar que podemos sim ser afetados pelo que não é decidido por nós mesmo, e sim pelo coletivo – por outrem. Como então acordar com a sensação de que já não somos mais donos de nossas decisões? 

Dirigido por Carolina Jabor (de Aos Teus Olhos) e Anne Pinheiro Guimarães, Transe reconfigura o óbvio duplo sentido com o qual esse título registra em nosso imaginário. Protagonizado por um trio jovem de respeito – Luisa Arraes, Johnny Massaro e Ravel Andrade – a produção entrelaça os desejos que os unem enquanto seres, desdobrando as certezas e formações de cada um, e também um estado de torpor emocional oriundo de 2018. A reviravolta conceitual é perceber que, a despeito da beleza e da apresentação de seus protagonistas, a zona erógena por onde Transe se avizinha é o pano de fundo da produção, que está mais interessada em desabafar sobre um tempo que, graças a Deus, termina em dois meses. Percebendo agora, 18 de outubro de 2022, olhar os lugares por onde o filme passa não me fez bem, emocionalmente falando. Mas me pergunto se essa porrada não é necessária, mais uma vez.

Porque a chamada “esquerda caviar/cirandeira”, no qual muitas vezes meu entorno faça parte, de fato estava em um grupo de percepção pouco apurada em relação a realidade de quatro anos atrás, e se pegou desesperada exatamente nesse momento, entre o primeiro e o segundo turno. Desarvorados como a personagem de Arraes, criaram uma versão paralela de mundo, e o que Transe propõe é diferente de algumas opiniões já entreouvidas a respeito do filme. Sim, aquelas pessoas viviam em delírio e não faziam ideia da dimensão dos estragos; o roteiro de Jabor e Guimarães joga essa menina no olho do furacão, para que ela tente mensurar o tamanho do estrago do que estava apenas começando, em matéria de show de horrores. 

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Transe (2022)
Cortesia Festival do Rio

O que temos de apreciação, cinematograficamente falando, são os meandros com o qual Transe circula, em aspecto de narrativa e mise-en-scene. Fica claro que o filme foi realizado em esquema de guerrilha, com seus planos sendo capturados de maneira menos rígida em manifestações externas, com decisões adaptadas em seus meios, para fins possíveis. É uma proposta do qual o cinema brasileiro já está acostumado, e as manifestações políticas da última década serviram já para contextualizar ficções e documentários em conexão com nosso momento de país. Jabor e Guimarães atrela essa sua movimentação a uma alegoria romântica onde três jovens buscam uma liberdade afetiva que não é compactuada com o que o cenário político está propondo. Mesmo enquanto brancos e privilegiados, e infiltrados em uma realidade de exceção, os sons e silêncios que nascem da ruptura inicial desse triângulo provocam uma catarse psicológica, nunca explodida mas sempre evidente. 

É quando os personagens passam a sair de suas esferas para perceber o embate acontecendo ao alcance de suas mãos, e se dão conta de que não há como fugir do atrito. Entre o que acontece nas ruas e o que está disposto entre quatro paredes, existe um momento onde precisamos acordar de um lugar de inspiração intelectual para a ação propriamente dita; não há como realizar um conceito apenas com base na teoria. Em determinados momento de Transe, há um friccionamento entre o que se sente e o que se produz a respeito desse sentimento, incômodo ou não. É dessa motivação que parte a minha discordância em que vê um deslumbre nos personagens do filme, pra mim, inexistente. Pelo contrário, sua tensão é justamente na busca por um entendimento que parece acontecer tarde demais, infelizmente. A participação de Ana Flávia Cavalcanti é crucial para que diversos tensionamentos sejam alocados em cena, com a impulsão que a atriz já naturalmente aplica. 

Calcados em uma escola do naturalismo que parece exigir mais de si do que o habitual (os três atores são chamados pelos seus nomes de batismo), o que inclui cenas poderosas de discussão constante, em bares ou em casas, utilizando tantas participações de atores e atrizes ligados à arte sobre o estados das coisas, Transe nem sempre é confortável com seus atores. Se Johnny Massaro (de Os Primeiros Soldados, um dos grandes nomes do cinema brasileiro em 2022) está em lugar menos desafiador, Luisa Arraes (de Reza a Lenda) tem uma entrega ao qual o cinema não tem colocado essa atriz com frequência – e ficamos instigados com o Grande Sertão: Veredas de Bia Lessa, que vem aí. É em Ravel Andrade (de Álbum em Família) que nosso olhar se fixa quando tentamos apurar o detalhamento de Transe, porque o ator traduz sua arte em muitos conceitos aqui, seja como ator, instrumentista, performer ou cantor. Com uma sensibilidade ímpar, está em seus olhos o lugar de incômodo prestes a explodir representado pelo filme, e que deságua em uma cena final lírica e possível, diante de um horror que, repito, hoje já é quase passado. 

Um grande momento
Luisa e Ravel discutem por causa do amigo

[Festival do Rio 2022]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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