(Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil, BRA, 2019)
É difícil ser brasileiro. É difícil ter passado por uma história tão pavorosa, há tão pouco tempo, e ver que ela começa a se repetir em meio a negações de fatos, negações da verdade e construções de novas falsas verdades. Durante 21 anos, as atrocidades contra o estado de direito e os direitos humanos foram repetidas cotidianamente, nos porões, na surdina. Essas mortes, desaparecimentos e torturas são minimizados desde 2016 – 56 anos depois – em frases como “se você fosse correto, nada acontecia”, “era só mostrar a carteira de trabalho e ficava tudo bem” ou, pior, em gritos e clamores por uma nova intervenção militar. Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil parte de um núcleo muito específico, do resgate familiar da própria diretora e encontra o silêncio. Esse que faz com que se esqueça os passado e traz a repetição. “Os silêncios são a borracha da história, selam pactos de esquecimento”, Carol Benjamin fala, em forma de filme, a seus filhos ainda pequenos.
Esses dias, após assistir ao curta Atordoado, Eu Permaneço Atento, com uma história ainda mais absurda (a tortura de crianças no mesmo período), me vi pensando em como a grande História precisa dessas histórias individuais para ser contada, da personalização dos acontecimentos em uma busca empática. A diretora parte de sua própria realidade, esclarece seu objetivo, quer descobrir a própria família, a história conhecida de sua avó e a não contada de seu pai. Assim, o filme chega a muitos lugares. Estão ali, num espectro mais amplo, a(s) ditadura(s), a união pela libertação dentro e fora do país e o próprio Brasil e sua trajetória trágica; assim como estão, no estrito, maternidade, solidão, humanidade, ressentimento. Carol é filha de César Benjamin, preso aos 17 anos de idade pela ditadura e julgado ilegalmente (já que era menor) após um parecer médico que dizia que ele tinha “a inteligência de uma pessoa de 35 anos”. Num dos muitos absurdos que não surpreendem, fora condenado a 13 anos de prisão, parte da pena cumprida em uma solitária.
Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil alcança esse lugar, sem dúvida. E isso fica muito claro em momentos específicos, que tocam fundo, como quando Cid vê seu irmão depois de anos e a primeira vez que ouvimos César falar. Essas duas passagens, tão íntimas e personalizadas engrandecem uma outra: o discurso de Dilma Rousseff na criação da Comissão da Verdade. Do estrito ao pleno, do pessoal ao universal. Carol entende e sabe a necessidade de contrapor os tempos, é habilidosa. Assim como o é no dispositivo: antigas cartas lidas por ela e por outros sobre a prisão, a luta pela libertação e o que vem depois disso. Para ilustrar as palavras, muitas imagens de arquivo e divagações visuais em busca daquilo que se sente, pontuadas por posicionamentos da avó Iramaya.
Em tela, numa confusão positiva de informações, o amor de uma mãe que sai da alienação para se tornar uma voz contra o regime. A força de uma mulher que vê seu filho caçula preso e tratado como sub-humano, torturado antes mesmo de se tornar adulto. A coisa da maternidade que parece clichê mas apenas é. “Mexe comigo mas não mexe com meu filho”, o virar a leoa. A conscientização política de Iramaya é bem pontuada pela neta em fotografias da jovem normalista desde a infância e depoimentos dela sobre o próprio casamento antes de tornar-se militante. O retrato está entre a descoberta e admiração, é afetivo, e difere da não presença do pai, em silêncios e ausências de respostas. Carol encontra essa dicotomia e nem sempre sabe lidar bem com ela. No risco dos documentários pessoal, vai construindo entendimentos junto com a feitura da obra.
Em seu balaio extremamente privado apesar da fala ecumênica, encontra o seu lugar de autora quando cria imageticamente angústias, pensamentos e as próprias lutas da avó Maya e do pai César. Mais do que percorrer o passado do pai, com sua Super 8, dá vazão aos sentidos. Porões, portas que se fecham, frestas de luz, grades e corredores ou, ainda em preto-e-branco, o mar revolto são imagens do seu sentir e de sua compreensão do sentir dos outros. Esteticamente, é o que há de mais forte em Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil. Na tecelagem fina, são imagens que acrescentam, e muito, a sua investigação, um posicionamento que fala muito mais alto, por exemplo, do que quando a própria realizadora se coloca no papel de personagem. Cada um de seus devaneios funciona como uma cola que une as imagens do próprio ao extrafamiliar.
Porém, Carol quer mostrar mais, quer dar rosto e voz àqueles que possibilitaram a feitura do filme. Não que seja reprovável, mas talvez, descabido. O encontro com personagens interessantes e fundamentais nessa luta pela libertação de seu pai e no conforto da solidão da avó, está em um outro registro, bem discrepante de tudo que se realizou. Para complicar, todas as quadradas conversas, em fundo claro, com planos tradicionais e previsíveis, surgem exatamente após os criativos e opressivos quadros experimentais de Carol. Compreende-se a existência, mas não existe acomodação, não orna. A ruptura prejudica a imersão, mas o longa, por sua história e, principalmente, pela bem construída teia de passado e presente, mágoa e devoção, palavra e silêncio, recupera-se todas as vezes.
Ao fim e ao cabo, Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil fala de feridas deixadas pela ditadura militar que são muito menos evidentes, de rupturas sociais e familiares que, diferente da estética do filme, não se restabelecem e nem podem ser superadas. Marcas de um trauma que estará dentro de cada indivíduo que sofreu nas mãos de um regime atroz, física ou emocionalmente. Em César e em vó Maya; em todo um Brasil que nunca encontrou a cura. Pior, que assim como mãe e filho, encontrou o silêncio, aquele que minimiza e apaga, que elege para presidente, depois de tudo, um ser que exalta a mesma ditadura e que, no último golpe parlamentar, fez questão de homenagear o único torturador condenado pela justiça. É difícil ser brasileiro. É difícil escrever uma carta sobre o Brasil.
Um grande momento
Cid vê César.