Crítica | Festival

Alvorada

A casa de Dilma

(Alvorada, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Anna Muylaert, Lô Politi
  • Roteiro: Anna Muylaert, Lô Politi
  • Duração: 90 minutos

Nos últimos anos, O Processo de Maria Augusta Ramos, Excelentíssimos de Douglas Duarte e Democracia em Vertigem de Petra Costa, descortinaram o golpe perpetrado contra a presidente eleita Dilma Rousseff desde a sua gênese até seu ato final, investigando cada escaninho dos palácios governamentais através de sua equipe, passando pelo julgamento em si até chegar em um olhar estrangeiro àquela narrativa. Unido a esses realizadores, as cineastas Anna Muylaert (de Que Horas Ela Volta?) e Lô Politi (de Jonas) se viram em prováveis esbarrar de câmeras – e de temática – com esses longas, e apenas dois anos depois do lançamento do último, apresentam Alvorada, o mais delicado da quadrilogia informal.

Desde o início, as diretoras são informadas que existe um limite dentro do que elas querem fazer, que é se embrenhar pelos corredores do Palácio da Alvorada, a residência presencial, durante o período de espera pela comunicação da decisão do injusto processo de impeachment que a presidente se viu ré. Dilma informará, portanto, quando suas câmeras não serão mais bem-vindas, e esse gesto muito humano da direção em absorver esses momentos como elemento narrativo dão o caminho da proposta respeitosa em adentrar alguma intimidade daquele ambiente de poder e transformá-lo, gradativamente, em um lar, com suas regras e funcionamento explícitos, ainda que aos seus bastidores falte voz.

Alvorada

Em determinado, a presidente Dilma declara que, na verdade, o Palácio não é uma casa, mas uma espécie de centro de convenções/reuniões, como um gabinete acoplado a um apartamento, onde lá sim encontram-se os aposentos da cadeira mais elevada do país. Com esse dado exposto, o trabalho de Anna e Lô é, então, explorar o espaço físico já tão conhecido de outros materiais e transmutá-lo em espaço híbrido, onde o aconchego e o trabalho andam juntos e se intercalam. Vemos os animais que residem no jardim, mas também a gama profissional que mantém a nada humilde residência em funcionamento, acoplando a paisagem material humana, enfim.

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Como uma silenciosa testemunha ocular, as lentes de Alvorada capturam o detalhe obscuro do não-observado, o não-visto, o não-divulgado. Enquanto os três filmes anteriores, contavam com vasto material de arquivo e próprio de ambientes padronizados como arenas de batalhas cujos bastidores do poder serviam como antesala para as resoluções mais inescrupulosas do nosso tempo, aqui as cineastas captam a placidez de uma mulher que não tinha nada a esconder em sua biografia, ao mesmo tempo em que a transforma na proprietária de uma casa cuja ordem de desejo está sendo secretamente arquitetada; Dilma não teme mais, porque já temeu muito.

Alvorada

Embora não a filme necessariamente como uma dona de casa (talvez falte essa fatia para que o filme alcançasse uma esfera ainda mais íntima desse quadro pintado com leveza), sabemos que esse universo já é de sua intimidade porque é ali que ela mora há mais de cinco anos. É através dessa certeza que o filme tão sutilmente desenha a intimidade da mesma com espaços, na segurança de se mover por cada cômodo e na forma acertadamente cautelosa como se porta, entre portas e cortinas. Aquele lugar, que a presidente não considera um lar, não passa da extensão de tudo que ela representou, de 2011 a 2016 – mulher e sobrevivente.O filme então mapeia sua essência, que está em cada reunião, em cada decisão, passeando do bucólico captado à tensão executiva com destreza.

Como a primeira mulher a comandar o país, Alvorada não se furta a retratar afetivamente o lugar que ela habitou no período, entre limpezas de piscinas, preparação de refeições e reuniões de pauta governamental – as coisas mundanas e profissionais precisam estar definitivamente conectadas umas às outras, como na vida de qualquer outra mulher. Anna e Lô, compreendendo essa jornada de maneira integral, fazem questão de não tirar de Dilma o que muitos disseram ter sido o motivo da perda de seu cargo, ser mulher. Ao invés disso, filma sua assessora cuidando dos seus brincos e filma a emoção das mulheres que a rodeiam.

Ao intercalar esses dois universos que toda mulher trabalhadora desempenha no mercado externo hoje, as diretoras retiram as barreiras que elevavam Dilma Rousseff a uma condição excepcional, a comandante da nação. No fundo, Dilma é uma mulher demitida injustamente, uma condenada sem direito a recorrer da sentença, vítima de um golpe dos “donos” que roubaram a “firma” pra si. Uma mulher que trabalha e cuida da casa, tal qual as funcionárias pagas pra limpar qualquer vestígio de Dilma após ela sair.

Um grande momento
“O diabo é uma invenção da ficção”

[26º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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