Crítica | Festival

Desaprender a Dormir

Relações não-discutidas

(Desaprender a Dormir, BRA, 2021)
Nota  
  • Gênero: Comédia
  • Direção: Gustavo Vinagre
  • Roteiro: Gustavo Vinagre
  • Elenco: Gustavo Vinagre, Caetano Gotardo, Rafael Rudolf, Carlos Escher, Bruno Rudolf, Larissa Siqueira, Julia Katharine, Fábio Leal, Lucas Scudellari, Marcelo Diorio
  • Duração: 96 minutos

Flávio e José têm tido ruídos entre si por conta de suas atividades atuais – o primeiro tem pesquisado e editado filmes pornôs, e o segundo tenta finalizar uma teoria que justifique, entre outras coisas, a presença humana em Marte. Logo na primeira interação entre os personagens mostrada em Desaprender a Dormir, José conta um estranho sonho que teve, reclama que uma banana tá passada e é interrompido no meio de seu relato, um hábito de Flávio. O filme não deixa de mostrar seu descontentamento, sua insatisfação, e ao longo do filme veremos que ela não é momentânea; se não é necessariamente uma crise, o casal enfrenta um desgaste inicial do relacionamento, e a solução para esse entrave pode vir do espaço – ou do sexo.

Depois de sua “trilogia de uma pessoa só” (Lembro Mais dos Corvos, A Rosa Azul de Novalis e Vil, Má), Gustavo Vinagre deixa de observar as solidões alheias para filmar sua história de amor, e agora as questões não são apenas individuais, mas do que nasce de um amálgama. O autor consegue a partir desse olhar algo complexo, que é armar dois campos de conflito, um interior e outro explícito – em mais de um sentido. É um filme que ao mesmo tempo transborda carinho, mas também a subversão de uma forma que tantos grandes filmes já geraram, de Claude Lelouch e Richard Linklater: o filme de casal, aqui pra dentro e pra fora. É com extrema coragem que vemos um dos mais ousados diretores brasileiros na atualidade precisar sua forma de afeto.

Desaprender a Dormir
Cortesia Festival Ecrã

A chegada desse novo filme ao “multiverso do Vinagre”, que é alimentado de maneira salutar pelo próprio autor com acréscimos contínuos (estão em cena aqui Julia Katharine e Marcelo Diorio, protagonistas de dois dos filmes de sua trilogia), acrescenta uma camada de discussão conjunta a sua filmografia. Há um retorno a troca que não unilateral com o público mas também entre si, assim como é uma forma de realização possível dentro de um tempo pandêmico, também ele responsável por indagações presentes no filme. Onde estávamos quando tudo desandou em nossas vidas? O que fizemos de laborioso para reverter uma relação que parecia em ocaso?

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Também é possível acompanhar o interesse do diretor pelo cinema de gênero, com as óbvias evocações da ficção científica que passeiam por todos os setores da produção, desde o “consolo-monolito” até o sexo alienígena, da programação televisiva cinematográfica que acompanha os personagens até o “deus do sono youtuber auto ajuda”, que abre o filme como uma figura mitica e se transforma em um guru mercenário e avulso qualquer – essa subversão que Vinagre faz sobre tudo e todas as coisas são uma mola corrosiva do seu cinema e um dos dados que o torna tão delicioso, porque abarca discussões com tanta propriedade quanto as descarta com sagaz ironia.

Desaprender a Dormir
Cortesia Festival Ecrã

Mas a relação entre Flávio e José é uma mola que rege toda a perfumaria ao seu redor (a cargo de um inspirado João Marcos de Almeida). Interpretados por Vinagre e Caetano Gotardo, sua intimidade tão constantemente agressiva nunca é tão impactante quanto a fragilidade de seus olhares. E isso é intercalado em duas interpretações que se equilibram em uma gangorra complexa de sentidos e intenções. José precisa da presença do namorado, mas também precisa ter sua voz respeitada; Flávio automatizou uma relação e não percebe que está igualmente vazio. Ambos estão especialmente humanos em cena, mas é Gotardo quem tem o grande momento de Desaprender a Dormir, de partir o coração na sua busca por contato.

Ainda que algumas passagens pareçam sobrar ao material que realmente importa em cena – uma relação alquebrada que precisa ser discutida e compreendida – Desaprender a Dormir não desiste de abraçar muitas metas, e a saída para isso sempre é o excesso (o guru Hypnos em cena, ganhando like com os incautos Katharine e Fabio Leal, já bastava; o coaching do sono parece uma ideia já utilizada, e por isso repetitiva). Mas mesmo esse excesso facilmente percebido é meticulosamente pensado para que sua catarse soe alta e clara. É essencial para isso que Vinagre e João Marcos estejam tão azeitados em sua parceria, e elaborem o filme de maneira tão anárquica quanto surreal, e constantemente artificial – nunca esquecemos sua porção Cinema, mesmo quando aperta os botões que minimamente o elevam em sua curva emocional. 

Um grande momento
O monólogo de José

[5º Festival Ecrã]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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