A minha maior sede em ver um filme da programação da Berlinale era Next Door (Nebenan), do ator Daniel Brühl (43). Nascido em Barcelona, ele é filho do diretor Hanno Brühl e da professora Marisa González Domingo.
Na Berlinale 2003, na noite prestes a acontecer a premiére de gala de Adeus, Lenin, o jovem ator estava sentado duas fileiras à minha frente. Naquela mesma noite, depois da plateia se rasgar de rir com as idiossincrasias nos trilhos entre velhos e novos tempos, Daniel ganharia o mundo. Choveram convites de diretores cults da Europa e dos Estados Unidos. Nessa edição especial da Berlinale em 2021, Daniel estreia como diretor.
Depois daquela noite da gala, foram várias vezes que presenciei o ator em festivais, festas de premiação ou conversas com a plateia. Daniel tem um aura que bate de frente com aquela que é um must na nata da classe artística alemã: a soberba, a arrogância de quem pertence a um clube exclusivo e privilegiado para poucos.
Cartilha do understatement
Seja em Q&A com alunos da Oxford Union ou em coletivas na Alemanha, Daniel sempre faz questão de não se enquadrar nos parâmetros não escritos, mas que fazem parte do código de comportamento de atores e atrizes.
Essa despretensiosidade o torna extremamente empático como personalidade e instigante como ator (e agora diretor) pelo seu olhar diferenciado e pela rara capacidade de ironizar o setor em que atua e lhe mostrar o espelho.
Next Door não angariou nenhum prêmio na Berlinale, mas é forte candidato para o Prêmio de Público, existente pela primeira vez na mostra Competitiva. O fato de estar ausente na premiação tradicional (entre outros) deixa várias dúvidas sobre o olhar da comissão seletiva que, aliás, tem perspectiva bem diferente a da era do ex-diretor Kosslick e a mudança não se mostra positiva.
Baseado numa ideia do próprio Daniel, Next Door é um mosaico das mazelas do contemporâneo na hoje cosmopolita Berlim, cidade (como nenhuma outra) que mais sofreu e sangrou com a Guerra Fria e a divisão entre Leste e Oeste.
Na noite da cerimônia de estreia mundial de seu filme (pela primeira vez com público), Daniel, esbanjando contentamento, declarou estar “emocionado” com tanta gente no cinema para assistir a seu filme. Além de confidenciar fazer aniversário naquele dia, o recém-batizado diretor revelou que a ideia do filme surgiu num Tapas Bar em Barcelona. “Tinha um homem de estatura corpulenta que me olhava com cara feia e sem pestanejar e eu constatei: Ele não gosta de mim”. Seu produtor confessou que exatamente no dia do aniversário de Daniel em 2020 (ou seja, no meio da pandemia), era rodada a última cena do filme.
A locação principal de Next Door é (como não poderia ser diferente) um bar de esquina com um nome de interpretação semântica tipo mil folhas: “Zur Brust”. Dar o busto para alguém em língua alemã significa dar colo, acolheminto. Pegar uma pessoa pelo busto significa confrontação.
Dentro do que serve como microcosmo da cidade de Berlim, Daniel Brühl nos possibilita vislumbrar tanto a cidade metropolitana, aquela que ainda traz memórias e carrega feridas que os 30 anos depois da queda do Muro de Berlim não cicatrizaram, mas também a Berlim caótica e suas mazelas. E elas são muitas!
Sinopse
Daniel, um ator ambicioso mora num prédio reformado do bairro de Prenzlauer Berg, bairro que fica leste da cidade onde viviam os oposicionistas ao sistema da Alemanha Oriental, que fica leste da cidade e que, como nenhum outro, é o símbolo do fenômeno da gentrificação e da especulação imobiliária que desfigura e desmembra em âmbito social e demográfico, a cidade.
Decerto que entre as metrópoles européias, Berlim foi a derradeira em atravessar esse processo socioeconômico. O apartamento do protagonista tem sala de academia e um elevador que o transporta direto para a cobertura, enquanto vizinhos ao lado têm que exercitar as canelas para chegarem a seus apartamentos. O plot do solo luxuoso com vista para a torre de Berlim, a babá espanhola com o surpreendente nome de Conchita para que os filhos cresçam bilíngues, a esposa dormindo esparramada na cama King Size mesmo quando o marido sai de viagem para um dos seus maiores desafios artísticos são um mosaico da situação de partida da figura inicial, o ambicioso ator que está prestes a estourar.
Cafezinho e cerveja
Ao invés de ir direto para o aeroporto, o ator prestes a fazer o teste de sua vida para uma produção que promete visibilidade para “milhões de espectadores” entra no bar de esquina para se acalmar, dar uns telefonemas para seu agente e outros envolvidos e assim tentar obter mais informações sobre a personagem, decorar o texto que cabe numa folha de A4 e tomar um café.
A escolha do elenco foi alinhavada pela prestigiosa agência de atores e atrizes Simone Bär Casting: a dona do bar, uma elegante senhora do leste que nos delicia com o ácido humor berlinense e que, na trama, é a pilastra tolerante, que lida com o ator famoso, com o que se sente fracassado e com aquele sentado no fundo do bar, tendo a função de, com seu diálogo, soltar frases repetidas e aparentemente sem sentido para exacerbar ainda mais a emocionalidade dos protagonistas.
A maestría de Susanne Hopf no decorar do cenário principal do filme é um deleite para aficionados por detalhes: Plaquinha de carro da DDR (Alemanha Oriental), a escrita Burgemeister, a tradicional cerveja berlinense Schultheiss, o equipamento de som movido à fita cassete e tantos outros elementos. Permita-se fazer essa viagem pelos detalhes. Será um deleite!
Tudo começa pelo o simpático plus sarcástico e com um toque daquilo que o baiano Caetano chama de “reconhecer o valor necessário do ato hipócrita”.
Na dialética de Bruno, vivido com a rusticidade berlinense de Peter Kurth, ele tenta tirar o ambicioso Daniel, da zona de conforto e da soberba, tão comuns à nata de atrizes e atores alemães. Com sucesso.
Realidade x Ficção
Enquanto Daniel Brühl não tem que provar nada para ninguém e pode se dar ao luxo de ser protagonista do andar de sua própria carreira, o Daniel do filme é um escravo da própria ambição e da pressão de estar na ativa, com trabalhos como fator legitimador para se manter En Vogue.
A abordagem de Bruno, inicialmente bem pueril ao pedir um autógrafo, é um engodo. Com o mesmo guardanapo do autógrafo, ele irá limpar sua boca depois de tomar uma das muitas cervejas que rolam naquele bar durante a parte do leão do filme. O número inflacionário que Daniel tira do bolso, uma nota de 20 euros incluindo solícita gorjeta, é também ferramenta irônica frente ao aumento do custo de vida em bairros que sofrem gentrificação.
O roteiro, também escrito por Brühl, é uma Melange de crítica-social, abordagem histórica (diferenças entre leste e oeste) e desdobramento político resultante disso. Bruno se vê como um “Derrotado da Unificação”, jargão usado no âmbito político para a geração que se perdeu depois da queda do muro.
Nos diálogos que se tornam mais profundos e estonteantes, não se sabe ao certo se Bruno era a favor ou contra o sistema da antiga Alemanha Oriental. O estranhamento entre os dois, as diferentes perspectivas de vida resultante da socialização política são muito bem resolvidas devido ao roteiro encorpado e à direção atenta e bem alinhavada do estreante Brühl.
A arrogância ocidental no discurso de Daniel bate de frente com a retórica oriental de que “nem tudo era ruim”. Conforme as discrepâncias e os antagonismos entre os dois vão chegando ao ápice, o abismo surge como quem a cada passo à frente se depara com a monstruosidade um precipício.
Depois da etapa da confrontação direta entre biografias, perspectivas, sonhos e projetos, Bruno solta a última cartada. No melhor estilo do ditado popular que ensina que vingança é um prato que se come frio, Bruno apresenta a Daniel a fatura e faz desmoronar seu mundo, que ele pensava ter sob controle, até os mínimos detalhes.
No meio de todo o conflito mil-folhas, o roteiro digno de elogio, não deixa passar em branco a crítica sobre a desfiguração da cidade de Berlim, composta de algumas esquinas unidas e outras segregadas, e Daniel faz isso com maestria sem o instrumento do dedo rígido, mas movido por nítida insatisfação. Em entrevista à emissora InfoRadio, ele frisou a importância de ter feito a abordagem sobre o fenômeno da gentrificação em território com quem nutre maior identificação, ou seja, Berlim.
A produção tem financiamento robusto de quase todas as instituições de fomento cinematográfico na Alemanha como também do Program Media da União Européia (UE).
No Happy End
O diretor Brühl comprometeria a honestidade do filme se optasse por um final feliz. Por um momento ele nos deixa sonhar com o fim dos problemas quando a esposa sugere: “Vamos para casa?” e ele responde enquanto despeja um olhar soberbo para Bruno: “Vamos para casa!”, mas, na cena seguinte, o único final admissível se cristaliza na tela: Berlim é uma obra inacabada, assim como biografias, perspectivas e percepções de quem vive nela.
O primeiro filme de Brühl é um Must See. Além de todos os atributos anteriores, é um retrato da Berlim contemporânea: solo de intolerâncias, egoísmos e muitas sombras do passado.
A première mundial aconteceu hoje (16) na Berlinale, e o filme estreia dia 15 de julho nos cinemas alemães.