Crítica | Festival

As Irmãs Macaluso

O que resta de nós

(Le sorelle Macaluso, ITA, 2020)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Emma Dante
  • Roteiro: Emma Dante, Giorgio Vasta, Elena Stancanelli
  • Elenco: Alissa Maria Orlando, Susanna Piraino, , Anita Pomario, Eleonora De Luca, Donatella Finocchiaro, Viola Pusateri, Serena Barone, Simona Malato, Laura Giordani, Maria Rosaria Alati, Rosalba Bologna, Ileana Rigano
  • Duração: 94 minutos

Emma Dante tem apenas dois longas no currículo, Via Castellana Bandiera e esse novo, As Irmãs Macaluso, ambos exibidos com sucesso em diferentes edições do Festival de Veneza. Ambos versam sobre o tempo, o anterior de uma maneira mais imediata e urgente, o novo de forma dilatada até o extremo; em comum, o feminino a decidir como centralizar, enraizar e encapsular esse mesmo tempo, tornando-o parte integrante da narrativa e utilizando de sua própria dimensão pra construir dramaturgia. Através da elaboração de uma régua que meça esse tempo através de três tomos, o filme apresenta problemas e questões que são gradativamente resolvidos por sua própria estrutura.

Baseado em uma peça de autoria da própria Emma, o filme cerca um quinteto de irmãs em espécie de idílio – vivem sozinhas, sem pai ou mãe, em um apartamento enorme, e sustentada por pombos, um exército deles, alugados para eventos que acabam por voltar para suas donas. Nesse recorte imaginário da realidade, as moças constroem uma trajetória humana que esbarra em uma sucessão de perdas, e posteriores reconstruções, do qual seremos testemunhas apenas do essencial. E o que sua diretora trata como essência é a relação dessas moças consigo mesmas, com o próprio corpo, com suas delicadezas particulares, fechadas em uma espécie de república privada.

As Irmãs Macaluso

Tanto o prólogo quanto o epílogo de As Irmãs Macaluso tratam sua ambiência com um cuidado ímpar, apostando no sensorial para situar sua narrativa, que é primordialmente feita de gestos e sensações. A ligação de suas personagens com o próprio corpo, com suas inclinações idiossincráticas, com o espaço que é de pertencimento delas e também o externo, é revelado pela diretora com profunda imersão. Os planos nesses extremos narrativos são compostos mais de ocupação estética nos cenários, composição imagética no espaço filmado, que tenta traduzir a profunda liberdade que o roteiro inicialmente fornece a suas protagonistas.

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No futuro, esse caráter simbólico será retomado, no encerramento dessa jornada, mas o miolo da produção é tomado por uma verborragia que se desgarra do resto do material. Não é melhor ou pior em análise seca, apenas destoa do que parece ser a atmosfera pretendida ao projeto, mais lacunar e atmosférica e menos descritiva. Ainda assim, essa parte do meio concentra características comuns ao cinema italiano, tais como uma dramaticidade mais evidente e um excesso de discussões, brigas e conflitos, todos excessivamente externalizados. Mesmo nesse momento, o filme encontra espaço para a sugestão, e é aí que o filme retoma sua força, deixando claro onde estão centrados seus pontos fortes.

As Irmãs Macaluso

Há de se observar uma aparente tendência à glorificação da tragédia no roteiro de Elena Stancanelli e Giorgio Vasta; será? Particularmente, creio que a produção demarca uma espécie de passagem de bastão entre cada pólo apresentado através de grandes perdas. Ao investir nesse recurso melodramático tão assumidamente, o filme me parece escolher alegorizar os elementos comuns à vida do que necessariamente celebrar o sofrimento, até por observá-los de maneira amplamente onírica. Ainda que o filme perca força quando abre mão do grafismo para o verbo, a diferença dos dois tratamentos também serve para mostrar o que funciona na produção, e que não é pouco.

Os elementos gráfico aliados às escolhas estéticas e de mise-en-scène e decupagem de As Irmãs Macaluso acabam falando mais alto quando o combo geral é analisado, e detalhamos o que representam cada uma das passagens menos discorridas do filme, como as danças de Maria (ambas igualmente impressionantes), a sequência no cinema ao ar livre, a forma como o filme lida com a sexualidade de Pinuccia sempre discreta e enquadrada com elegância, ainda que muito evidenciada pela narrativa, as interações de Antonella com os pássaros e as irmãs… enfim, um filme onde o feminino se desdobra de diversas formas, da sororidade mais plena até o desamor mais cruel, mas deixando claro que sua expressão do gênero mais pulsante é aquela que é inerente às palavras — vem de outra região, do sensível, do onírico, do carinhoso, do tátil acima de tudo.

As Irmãs Macaluso

Na superfície, também estamos falando sobre a visita cruel do tempo, parafraseando o título em português do romance de Jennifer Egan. O tempo está essencialmente em todas as partes da vida de alguém, tenha tal pessoa 5 ou 75 anos. A forma como cada um irá se relacionar com essa passagem, em como cada objeto fará diferença, em como cada espaço físico reverberou no espaço corpóreo, em como lidar com o que está tão próximo a você que é impossível de desfazer, seja um laço sanguíneo ou um laço de fita, isso está impresso em cada fotograma do longa de Emma Dante, que nos faz o mais inconveniente dos convites — olhe para o passado, veja tudo que perdeu, e aí… o que sobrou de você nas coisas, nos lugares, nas pessoas? E o que sobrou em cada um de nós de tudo aquilo e aqueles que nos compuseram?

Nota: 4

Um grande momento
Batom para Pinuccia e para Antonella — pra sempre

[8½ Festa do Cinema Italiano 2021]

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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