Crítica | Festival

Quo Vadis, Aida?

As pessoas por trás da História

(Quo Vadis, Aida?, BIH, 2020)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Jasmila Zbanic
  • Roteiro: Jasmila Zbanic
  • Elenco: Jasna Djuricic, Izudin Bajrovic, Boris Ler, Dino Bajrovic, Johan Heldenbergh, Raymond Thiry, Boris Isakovic, Emir Hadzihafizbegovic, Reinout Bussemaker, Teun Luijkx
  • Duração: 101 minutos

“Quo vadis?” é uma expressão latina que ganhou reverberação moderna através de um relato descrito no evangelho, em diálogo entre São Pedro e Jesus Cristo pós-ressurreição, e significa “para onde vais?” . Dado o contexto em que ela é feita e aplicada enquanto parábola bíblica, a utilização no título do novo filme de Jasmila Zbanic (Urso de Ouro por Em Segredo) é automaticamente inteligível, dado que sua protagonista assim como o filho de Deus, incorre em voltar continuamente a imolação, ainda que perca cada vez mais a própria humanidade contínuas vezes, ela tem um serviço a realizar, ainda que os riscos ultrapassem a ela mesma.

Quo Vadis, Aida? relata uma parte recentíssima da história da Bósnia e Herzegovina, o genocídio ocorrido há 25 anos atrás conhecido como o Massacre de Srebrenica, quando tropas sérvias invadiram a cidade de mesmo e conseguiram capturar mais de 8 mil homens, entre idosos e crianças, e exterminá-los, apesar da cidade ser considerada protegida pela Organização das Nações Unidas, além da selvageria que ainda excluiu estupros de mulheres e adolescentes. Uma barbárie inacreditável que nunca é utilizada de forma sensacionalista pela diretora, porque suas intenções não são radiografar os eventos.

Quo Vadis, Aída?
Cortesia IFFR

De forma inteligente, Jasmila tenciona realizar cinema com o genocídio, o que pode causar certo espanto de maneira pragmática, mas basta dizer que a diretora retira ao máximo o paternalismo, a dramaticidade, a explicitude de atos para compor um painel extremamente conciso de dias exasperantes de julho de 1995. Ao contrário de jogar sua protagonista e os seus num calvário de acontecimentos ininterruptos de dor desregrada, o filme se embrenha na ação perpetrada pela mesma, uma professora que atua como tradutora entre militares da zona de proteção da ONU em ação contínua pelos 100 minutos da produção.

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Quinze anos após sua vitória no Festival de Berlim, Jasmila parece completamente amadurecida como cineasta ao lidar com um universo tão recente da história de seu país de maneira tão apartada de fatos literais. Ela conduz com muita empatia e crescente fúria os caminhos de Aida, uma mulher que precisa realizar uma tarefa, e acaba sistematizando tudo à sua volta, do passado ao presente. As imagens de prólogo, epílogo e flashback do filme retiram da produção um traço de operação trabalhista para lidar com o ser humano em estado bruto – literalmente. Desse combo de tratamento imagético, a diretora alimenta seu filme e o engrandece.

Quo Vadis, Aida?
Cortesia IFFR

Não se trata apenas de uma forma padrão de lidar com a maquinaria do sistema, suas jurisdições e os regulamentos de um ofício às margens da guerra, mas em extrair do que geralmente é prático camadas de sensibilidades escondidas em frestas das imagens, e ao mesmo tempo não se deixar sucumbir pela dramaturgia, com o foco na maior parte do tempo na realização das tarefas propostas pelo ofício – ofício-roteiro, tradutora-atriz, simulacro-filme. O desespero crescente diante das ações esquematizadas na produção jogam Aida num labirinto físico sem esconder o burocrático, que trancafia essa mulher duplamente.

Em determinada cena, já caminhando para o desfecho, a diretora nos deixa conscientes de qual é o lugar que ela confiou à atriz Jasna Duncic. Já premiada no Festival de Locarno há 10 anos, Jasna compreende sua personagem e o corpo da mesma, em uma atuação daquelas que parecem captarr tudo que cerca seu projeto. Na citada passagem, Aida visita seu apartamento, olha ao redor, toca fotos que não são suas, preenche aquele espaço com sua trajetória, e dali sai após despejar um trovão em cima de outra mulher; nesse momento percebemos o lugar onde Quo Vadis, Aida? conseguiu chegar.

Quo Vadis, Aida?
Cortesia IFFR

Ao elevar sua produção com toques de suspense crescente, exasperação ininterrupta e um constante aprisionamento da personagem em multidões, becos e espaços cênicos que não precisam ser exíguos para serem sufocantes (mas que eventualmente também o são), Jasmila transporta da frase bíblica não apenas a certeza da complexidade de seus atos que transmutam dever e devastação, mas também configura Quo Vadis, Aida? em grande cinema sem nunca deixar o histórico em segundo tratamento; caminham juntos a História e a história.

Um grande momento
“Nós estamos/não estamos na lista”

[International Film Festival Rotterdam 2021]

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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