Críticas

Hidden Letters

Deturpação do segredo

(Hidden Letters, CHI, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Violet Du Feng, Qing Zhao
  • Roteiro: Violet Du Feng, John Farbrother
  • Duração: 89 minutos

No condado de Jiangyong, província de Hunan, na China, mulheres do passado criaram um meio próprio de se comunicar e burlar o patriarcado imperante, o Nushu. O método secreto de escrita ancestral está no centro do documentário Hidden Letters dirigido por Violet Du Feng e Qing Zhao, trabalho interessante que transita entre a poesia e a observação, e se aproveita da exposição para elaborar a sua crítica.

A redescoberta do código que significava a libertação daquele grupo de mulheres em textos com desabafos e fugazes momentos de esperança encontra um presente oportunista. O desrespeito ao sentido está na postura de pessoas que criam eventos e produtos, incluindo grandes empresas que querem se aproveitar da pauta em lançamentos de tudo que puder gerar algum lucro, até mesmo batatas fritas.

Hidden Letters
Feng Tiebing

A deturpação não é apenas mercadológica. Muito do que está em Hidden Letters demonstra a persistência de uma estrutura que, embora tenha passado por transformações, não se liberta de determinações. É surreal que o Nushu, um ato libertário de uma comunidade repressora, surja hoje em aulas de submissão ministradas em escolas de princesas. Sem falar no desrespeito, assédio e importunação sexual constante dos homens por ser sua escrita uma atividade exclusivamente feminina. 

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Du Fang e Zhao transitam bem entre incongruências e se questionam sobre o quão contraditórias elas mesmas podem estar sendo ao não só revelar as cartas escondidas do título mas também usarem o Nushu de alguma maneira, um sentimento que se transferem bem ao espectador. Será que o fato de assumirem uma postura crítica justifica ou é suficiente? A dúvida não se resolve, mas a personalização do filme a amaina.

Hidden Letters
Feng Tiebing

Unidas pelo amor e dedicação ao Nushu, Xin Hu e Simu Wu são as personagens que trazem essa singularização e proximidade com a arte ancestral e a permanência do preconceito, não apenas com suas escolhas, mas com seus corpos e existências. A primeira é curadora do museu e aquela que conseguiu romper com uma relação abusiva, a segunda, está prestes a se casar com alguém que claramente não vê valor no que ela faz. O modo como as duas se relacionam com aquilo que conhecem tão bem, confrontando todo o sentido daquele movimento ora coaduna com ora contradiz suas posturas elaborando a complexidade de existir num mundo tão contaminado pela força do patriarcado.

Hidden Letters tem em si a força do resgate de uma história ancestral e essa essa potência de suas contradições. É ao mesmo tempo belo de se ver, por sua construção poética, e angustiante, pela exposição da atualidade que alcança.

Um grande momento
Encontro de gerações

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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