(La frontera, COL, 2019)
La frontera é a estreia em longas do jovem diretor colombiano David David, daquelas promessas que chamam atenção de cara pelo comprometimento com a imagem e com a palavra falada, e que não cansa de surpreender. Por abrir de forma muito literal e direta, o filme acaba por adquirir texturas aprofundadas ao longo da jornada, e a mesma sai da zona de conforto a todo tempo até o derradeiro clímax emocional, onde o roteiro nos apresenta cada vez mais camadas de sua observação sobre a jornada de sua protagonista, uma anti-heroína das mais instigantes que Gramado 2020 verá esse ano.
Somos apresentados a um trio de personagens que só se estabelece ao público quando se desfaz. Diana, Jorge e Chevrolet são uma família disfuncional que em pouco tempo entendemos que não precisa de torcida: trata-se de um trio de ladrões de estrada, que no limiar da miséria absoluta, encontrou um modo de sobrevivência em meio a violência. Diana está grávida de quase 9 meses, Chevrolet é o pai desse bebê e chefe contemporizador dessa família que formou com a jovem esposa e o cunhado Jorge. O calvário de Diana se dá quando os dois “homens da casa” faltam após um assalto frustrado, e ela é presa; é a partir desse momento que o filme deságua em outro caráter observacional a respeito dessa jovem mãe.
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Sozinha em um ambiente abandonado, semidesértico e gradativamente hostil, Diana se deixa afundar em delírios pulsantes e cheios de vida e uma atmosfera de crescente angústia, oposta aos seus sonhos. Não mais que de repente, dois novos personagens surgem trazendo diferentes elementos que complexificam a construção da protagonista e também ampliam as camadas do filme, que adquire a um só tempo um forte comentário político e a leveza necessária para que o todo não fosse assolado pelo peso do mundo. É dessa dinâmica entre a introspecção, o perigo e um insuspeito humor que as bases de La frontera se reerguem, para mostrar sua real amplitude.
O filme, que se situa na fronteira entre a Colômbia e a Venezuela, não nega as raízes da sua filmografia e costumes natais, e se rega de misticismo, política, abandono social e emocional e coroa com uma ode à sororidade, num caldeirão onde cada um desses elementos aparecem destacados e também condensados. A cargo do também estreante em longas Ivan Molina Carmona na fotografia, o filme estabelece um rico quadro imagético para o filme baseado em tons terrosos e esfumaçados que são quebrados pelo ostensivo fulgor dos sonhos delirantes de Diana e ganha nova paleta com a entrada em cena de Chalis, cuja exuberância é absorvida pela produção; até o desfecho, David vai se mostrar disposto a alterar os tons de seu filme a cada novo bloco de acontecimentos, de maneira orgânica.
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Autor também do roteiro, David se alimenta não de reviravoltas ou de surpresas narrativas, mas de um consciente tratamento dado aos elementos cênicos e arquetípicos, ao elaborar sua espécie de fábula da luta pela sobrevivência em tempos também eles fronteiriços, que impedem a aproximação e regem relação inumanas. Diana é uma flor bruta do deserto que se abre para a chegada de dois estranhos que a obrigam a olhar pra si, pro seu estado, e cuja empatia é compartilhada sem fins negativos, como se uma reconstrução possível só se apresentasse quando fosse permitido luz sobre as trevas – a chegada da ação sobre a inércia.
O acompanhar da jornada rediviva de Diana é amplificado pela troca gradual de mal disfarçado afeto entre ela e Chalis, e é preciso comemorar os pontos marcados pelo diretor ao encontrar Daylin Vega Moreno, filmar seu processo de imersão da melancólica inoperância e permitir o desabrochar de força sutil dessa atriz, até a chegada do vulcão textual Sheila Monterola, e a partir do encontro entre dois opostos tão evidentes, fazer nascer uma bela história não apenas de um resgate, mas da gentil abertura para o mesmo; uma simbiose artística sem par e uma química avassaladora explodem na tela.
![La frontera (2019)](https://cenasdecinema.com/wp-content/uploads/2020/09/La-frontera_interno3.jpg)
O que La frontera no final apregoa, com uma história de acovardamento e fuga constante do masculino, é a força do feminino como arma de resistência contra a violência, o autoritarismo, a servidão e a destruição dos valores familiares. Mais do que um banho de sororidade, David David grita que a ação solidária irá salvar quem se permitir ser salvo, e que os sonhos são feitos para serem realizados.
Um grande momento
O nascimento