Crítica | Festival

Sirât

O som e a fúria

(Sirât, ESP, FRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Oliver Laxe
  • Roteiro: Oliver Laxe, Santiago Fillol
  • Elenco: Sergi López, Bruno Núñez Arjona, Stefania Gadda, Joshua Liam Henderson, Richard 'Bigui' Bellamy, Jade Oukid, Tonin Janvier
  • Duração: 115 minutos

Em determinados momentos, não consigo entender muito bem onde nasce a natureza divisiva da relação entre os filmes e as análises. Sirât nasceu no último Festival de Cannes sob essa égide, de ser um filme com a propensão da polêmica. Não tenho nada a ver com o texto de ninguém, mas discorro sobre isso aqui porque não encontro margem para um dissenso saudável aqui – mas sim, é bom que haja, com qualquer obra. Sobre o meu olhar, enxergo que o diretor Oliver Laxe convoca seus personagens a uma espécie de reconfiguração familiar dentro de tempos do caos, da guerra e da mortandade indiscriminada. Não tem a ver com a família que escolhemos, mas nas vezes onde aquilo ali que restou é o único quadro onde ainda podemos nos agarrar por afeto e compreensão. Não se trata de algo dito entre os dentes pelo filme, mas com o peito aberto, com os pulmões cheios ou repleto de dor. 

Laxe é um diretor jovem de idade e de experiência, talvez por isso seus filmes tenham pulsão de vida, seja em qual escaninho for colocado. Sirât é seu quarto longa, e o anterior (O Que Arde) caminhava sobre outras diretrizes, muito mais ocupado com o tempo das coisas e de seus desdobramentos, sem a urgência febril vista aqui mesmo quando o coração adormece. Perto de suas incursões anteriores, o filme que ganhou o prêmio do júri no Festival de Cannes e que abre a Mostra SP soa como um elemento estranho dentro dessa filmografia de impressão mais sensorial. Esse elemento permanece aqui, mas a ele é acrescida uma tensão natural em torno do que é mostrado, na intercalação entre o mundo material e a sublimação de uma natureza selvagem que emerge pelas frestas da imagem, até engolir o plano com sua fúria dúbia. 

Existe aqui a amplitude do escopo a cada nova etapa da narrativa, talvez por isso os créditos demorem tanto a surgir na tela. À primeira vista, Luis e Esteban estão procurando a filha/irmã em uma rave no deserto do Marrocos, porque receberam a informação que Mar estaria ali, depois de meses sem mandar notícias para casa. É simples esse tanto, embora igualmente tanto os circule – o conceito de imensidão testado a cada momento que o escopo abre, a conexão entre Homem e Natureza (ainda que árida) que não está também disposta no seu lugar mais óbvio, mas que se mostra cada vez mais indissociável. Então, temos o olhar mais direto sobre essa história se amplificando cada vez mais, sempre moldado pelo externo; são as testemunhas oculares dessa busca, são os sons que vêm de longe para configurar a realidade do qual estão todos afastados, é a presença ausente, que se torna cada vez mais definidora de tudo o que se vê. 

Lembro de O Comboio do Medo testemunhando não apenas essas imagens, mas a sensação interna e externa que elas provocam. No crescendo de Sirât, tal criação imagético-narrativo possibilitam não apenas uma leitura, essa já acessada sobre a relação intrínseca adquirida entre pessoas à margem, entre elas e suas trajetórias, entre tais rumos no campo micro, indo de resposta ao macro que está ao longe – nos tanques, nos rádios, na atmosfera. Outras fricções estão dispostas, e mostram em reflexo o estado das coisas no mundo em que vivemos. Se em 1977, tínhamos as crises de um Vietnã derrotado, de inúmeras ditaduras em curso, de uma guerra fria destruidora e de um flower power já fora de seu auge, agora temos os conflitos armados de países cujo interesse é destruir seu vizinho, cujas baixas civis são diárias e na casa de centenas, e que assustadoramente não provocam qualquer reação na anestesia do presente. 

Se o autor aqui pretende nos levar até a catarse das ações, além do limite da perda e desafiar nossos instintos mais primitivos, essa crise não é impingida apenas ao espectador. Sirât é uma experiência coletiva, um caso palpável de ininterrupto estado de tensão provocado por tudo o que está em cena. É o calor das imagens, é a insistência incômoda do som, é a angústia latente em cada passagem, situando seu intento em uma experiência 4D, cuja tessitura não é construída com óculos ou efeitos especiais, mas pelo poder de congraçar os conceitos fílmicos por uma ideia comum, a de nos carregar para dentro de um furacão de sensações. O conceito pode até ser parecido com o de uma montanha-russa, porém excluam o vazio desse lugar; o que temos aqui é a transposição absoluta das fagulhas de cena para quem as assiste. E a intenção, sem qualquer tipo de sugestão dos seus códigos, é a mais óbvia: para o que estamos em cena e o que fazemos com o nosso lugar? 

É uma pergunta cinematográfica por excelência, mas as respostas individuais têm a qualidade de varrer o que vemos, ainda que da maneira mais avassaladora, para encontrar algum tipo de semelhança fora da tela. Ainda assim, trata-se de um raro momento de Cinema onde a expressão provocada pelos irmãos Lumiére lá atrás, em A Chegada do Trem à Estação, volta a fazer sentido – isso não é pouco, e nem acontece todos os dias em todos os filmes. Do ponto de vista da ferramenta mais primal a respeito, Sirât é expressão meticulosa do veículo onde está inserido, uma peça de audiovisual consciente de seu poder, e utilizando cada mecânica de seu potencial a favor da expressão. Se a máquina hollywoodiana não só pode como é celebrada por tal comoção, porque não Laxe?

É isso, e também muito mais. Porque sua substância é parte integrante da ideia do projeto, que é nos arremessar na direção do horror, e das consequência dele, para o bem e para o mal. É o eterno recomeçar, é um entendimento empático de observar a dor do outro e entender que a sua também pode estar em curso como parte integrante de um plano maior, é a utilização desse cenário político como porta de entrada para as pessoas e seus rostos, e suas verdades, e seu estado de espírito estampado em cada expressão. Sirât é uma obra cujo fascínio advém também (e sempre haverão acréscimos a fazer a respeito de uma obra tão imensa) de ir além do que se espera, e sempre permitir que a força do que se vê seja parte fundamental do todo, exatamente como o que se sente. 

Um grande momento

A última dança 

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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