- Gênero: Suspense
- Direção: Antoine Barraud
- Roteiro: Antoine Barraud, Héléna Klotz
- Elenco: Virginie Efira, Quim Gutierrez, Bruno Salomone, Jacqueline Bisset, François Rostain, Loïse Benguerel, Thomas Gioria, Nathalie Boutefeu, Mona Walravens, Valérie Donzelli
- Duração: 102 minutos
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O cinema costuma recorrer a uma proposital confusão de registros de edição quando precisa aludir à perda de lógica/senso de realidade, como seu tema central. Tão comum que esse dispositivo seja acessado que, para os mais experimentados, fica no ar a inquietação da personagem de Virginie Efira em O Segredo de Madeleine Collins, e para que desdobramento o filme deve prosseguir. Mas mesmo entre essa fatia do público terá quem se perca e/ou seja surpreendido com essa ideia a respeito de uma mulher cujo destino está bifurcado, e que nada é muito fácil pra ela – em manutenção desses micro universos e na encruzilhada que ela já está mais que atrasada para escolher. E é sabido, quando nós adiamos uma escolha, a vida vai lá e escolhe por nós.
Existe sim essa ambientação difusa, onde não conseguimos distinguir as camadas de pesadelo que o filme elenca em sua totalidade. Desde o plano sequência inicial, de aparência descolada do restante, o filme veste uma capacidade de ludibriar que é tomada por empréstimo por sua protagonista, que vive uma vida dupla. Mas essa duplicidade é apenas assumida, ou será também sentida? Porque é bancado, em cena, uma percepção adulterada dos fatos concretos, que aos poucos compreendemos de quem parte. O filme, de maneira acertada, assume pra si esse desconforto em relação à sua textura, e absorve aos poucos essas decisões narrativas. Não é o caso de ludibriar o espectador, mas de revestir a produção com elementos que seu próprio roteiro não investiga tão rapidamente.
Existe um interesse nessa névoa, que contribui para o sucesso do projeto como um todo – tudo acaba por caminhar junto, direção, roteiro e a performance de Efira, caminham em conjunto para manter em suspenso as verdades do filme, que se revelam com delicadeza. Sem maiores sobressaltos em sua estrutura, assistimos ao desenrolar de Judith e de Margot, duas mulheres que vivem sob a mesma pele mas em países diferentes. Se já imprime algum fascínio em acompanhar o lugar onde uma pessoa está atuando para nós, imagina quando percebemos essa dupla jornada de performatividade. É acima de tudo uma experiência enriquecedora que o filme apresente essa ideia de maneira até simples, e aos poucos compreendemos que seus disparadores de premissa assim o fizeram para depois então situar o quadro de ações do filme, que são ainda mais complexos do que a memória daria conta de criar rapidamente.
Nesse contexto de insegurança, para todos os envolvidos (e isso inclui o público), O Segredo de Madeleine Collins consegue exercer sobre a audiência uma sedução que não é algo de fácil solução. Porque não se ancora no carisma de um elenco, porque não está à nossa disposição um diretor consagrado, enfim, porque essa carga é conseguida através do que o cinema melhor pode oferecer: construção e realização. Apesar de não estar entre os grandes nomes, Antoine Barraud potencializa o próprio roteiro com essa estruturação do desespero iminente em situações e imagens de impacto, como o close em Efira durante a apresentação (Reencarnação, é você?) e sua posterior queda. Não há momentos mais plácidos naquela existência, que vive em clima de possibilidades de descobertas de seus planos, ao mesmo tempo em que começa a confundir as existências e suas relações.
No centro da discussão está o talento cada vez mais descontrolado de Virginie Efira. Depois do incontornável Benedetta e de já ter mostrado o seu potencial nessa mesma edição do Festival Varilux (Esperando Bojangles), ela retorna com mais um entendimento muito refinado de uma mulher partida. Como vem se tornando frequente nesses tipos fragmentados em suas múltiplas motivações, a atriz mais uma vez adentra os sentimentos do que está sendo narrado e sai de lá mortificada, transparecendo tudo isso à plateia. Uma interpretação como deveria ser, tendo em vista as características de Margot/Judith, alguém que precisa reinventar-se talvez uma terceira para encontrar o ponto de equilíbrio entre o que ela quer e o que pode ser. O resultado final é meticuloso, ela vai a lugares muito além da compreensão humana, empatizando uma personagem que vagueia à margem.
Apesar de transmutar-se no final, saindo dos aspectos psicológicos da trama para um até encorpado thriller, O Segredo de Madeleine Collins sobrevive a seus 20 minutos finais pela base defendida com rigor até ali. Essa criação de qualidade, que reverbera para além do tempo de projeção graças a cenas angustiantes, como quando a família se reúne para uma espécie de intervenção à protagonista, é assegurada por esse trabalho superlativo. A priori, o filme é um sutil retrato em torno do desamparo emocional diante da perda, mas não podemos diminuir outro conceito, a respeito não apenas das mentiras que contamos aos outros, mas principalmente daquelas que enganam a nós mesmos.
Um grande momento
Na delegacia