Crítica | Festival

Aqui Não Entra Luz

Relações confinadas no passado

(Aqui Não Entra Luz, BRA, 2025)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Karol Maia
  • Roteiro: Karol Maia
  • Duração: 79 minutos

O trabalho doméstico no Brasil é herança direta da escravidão. A estrutura das casas, com quartinhos apertados, sem ventilação e com pouca luz, os acessos separados pelas entradas “de serviço”, revelam mais do que arquitetura, revela uma realidade de castas que se perpetua desde tempos coloniais. É nesse espaço de confinamento modernizado que Aqui Não Entra Luz, de Julia Zakia, encontra suas personagens. 

Há no filme um desejo de conciliar duas obras distintas dentro de um mesmo corpo. De um lado, está o filme histórico, quase arqueológico, que investiga a formação do trabalho doméstico no Brasil e suas raízes escravocratas; de outro, o filme íntimo, em que a diretora tenta compreender sua história com a própria mãe e as lacunas deixadas por uma maternidade que não pôde ser plena. São linhas, diferentes mas conexas, que nem sempre conseguem caminhar no mesmo ritmo. O que nasce como gesto coletivo retorna ao singular, e o que começa como confissão pessoal se perde na tentativa de abarcar uma memória que não é só dela.

As mulheres que aparecem diante da câmera não são personagens, mas sobreviventes de um sistema que atravessa séculos. Cada uma traz um modo de viver – ou não – a maternidade: a que foi obrigada a entregar o filho, a que precisou negar o desejo de ser mãe, a que deixou os seus para criar os filhos de outras e foi por estes esquecida. Nessas histórias, o filme encontra seu núcleo mais contundente. Todas compartilham uma experiência de silêncio, o testemunho de um Brasil que segue estruturado sobre pactos antigos de servidão. Sem romantização, só traumas.

O vínculo entre essas histórias e a da diretora, no entanto, nem sempre é preciso. Quando Aqui Não Entra Luz retorna ao âmbito familiar, à memória da rotina com a mãe e às perguntas não respondidas, ele encontra uma intimidade legítima, mas que às vezes escapa do coletivo que havia se formado e de uma arquitetura que se impusera como significado. A dor pessoal da cineasta é real e necessária, mas a costura entre essa ferida e as outras dores não acontece com a força que poderia. Há momentos em que os dois filmes – o histórico e o pessoal – caminham lado a lado, mas não se olham.

Ainda assim, é nesse movimento que se revela algo essencial: a ruptura geracional. As filhas dessas mulheres, inclusive a diretora, são o ponto de quebra da estrutura. Tanto as mães quanto elas recusam os lugares impostos e insistem em nomear o que antes era só silêncio. Quando uma das entrevistadas diz que encontrou liberdade apenas na filha, o documentário atinge a dimensão mais política de seu gesto. A libertação não é individual, é um salto que só pode ser dado por outro corpo, em outro tempo.

A forma do documentário reforça a ideia de que nenhuma memória é fixa. Arquivos são sempre reconstrução e o filme assume essa condição. A sobreposição de vozes, a montagem que fragmenta, a escuridão que persiste em certos planos apontam para um passado que não se deixa iluminar por completo. Contudo, essa escolha formal nem sempre cria passagem entre os blocos narrativos. Há rachaduras na transição, hesitações entre denúncia e confissão, entre aparato político e desabafo.

Mesmo com seus desajustes, a potência de Aqui Não Entra Luz é inegável. Há algo de urgente em seu objetivo de restaurar a presença daquelas que nunca tiveram lugar, assim como em entender que o espaço físico destinado a essas mulheres é a expressão de toda uma história de segregação. Mais do que contar a história de uma mãe, tenta compreender por que tantas outras foram impedidas de existir como tal. Se a costura entre os dois filmes nem sempre se completa, a ferida exposta permanece aberta. É nesse local, entre ausência e retorno, que o filme encontra sua verdade mais íntima e sua falha mais humana.

Um grande momento
A filha de Cris

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
Assinar
Notificar
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
Mais novo
Mais antigo Mais votados
Inline Feedbacks
Ver comentário
Botão Voltar ao topo