Crítica | Festival

Porto Príncipe

O ato de conduzir

(Porto Príncipe, BRA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Drama
  • Direção: Maria Emília de Azevedo
  • Roteiro: Marcelo Esteves
  • Elenco: Selma Egrei, Diderot Senat, Léo Franco, Mónica Siedler
  • Duração: 88 minutos

Um dos méritos de Porto Príncipe, segundo título apresentado em competição para o Cine PE 2023, é deixar-se descobrir seu tempo particular, ir embrenhando pelos campos de sustentação de cada narrativa, e ter seu desenvolvimento ser apresentado a partir das lacunas que sua própria definição pede. Durante seus primeiros minutos, eu diria mais de 10, somos apresentados a Bertha e Bastide, dois personagens que não se conhecem, de origens e países diferentes, que se conhecem quase de maneira acidental; não que o movimento tenha sido um acidente, mas que essas duas figuras tenham chegado uma a outra. A partir desse encontro, é destrinchada uma construção de temas afins, que se comunicam coletivamente e montam um mosaico de horrores que saíram da escuridão nos últimos tempos. 

Assim que se encontram, a dinâmica entre Bertha e Bastide carrega para dentro do filme uma carga dramática cuja intensidade tem a ver com sua ideia de origem que vai sendo desenvolvida, mas muito desse lugar de denúncia político-social aponta em primeiro momento para uma ideia de cinema de gênero também. Após o primeiro encontro dos personagens em casa, um plano que atenta a porta fechada da casa, se afastando lentamente, se comunica comigo de maneira positivamente óbvia. Mas Porto Príncipe não vai para esse lugar, por escolha própria; o filme tanto é efetivado para esse lado, quanto deixa claro logo depois que isso era uma cortina de fumaça passageira. Interessa ao projeto filmar essa relação, e o que os coadjuvantes podem agregar a ela, pro bem e pro mal. 

A diretora Maria Emília de Azevedo demonstra que pretende ir até o limite da exasperação, para então desistir dela de maneira física. Seu olhar caminha para o que tais procuras de cada um em cena aponta, em quais direções seus tipos irão avançar. Narrativamente, isso é uma escolha igualmente atraente, que comunica suas camadas e deixa a produção tão efervescente quanto seria o abraço no horror gráfico. Gradativamente, o filme tenta encaixar suas discussões em um quadro mais palpável, como se declarasse que o terror está ao nosso alcance, pronto para acontecer, e que a fantasia não deixa nada a dever ao que é cotidiano, em matéria de incômodo e condenação. Porque Porto Príncipe fala sobre Brasil, sobre como estamos sendo devastados por mazelas históricas que a extrema direita assumiu para si, mas também está interessado em olhar para a geopolítica mundial. 

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E o que politicamente afeta Porto Príncipe? O olhar na direção daquela narrativa é a de quem enxerga no país um fantasma das gerações seculares, que estão prestes a mais uma vez reverberar o racismo e a escravidão. A relação entre seus protagonistas não é chapada ou revelada de cara, mas acrescida de bases de conversação. A cada uma delas, estamos diante de um novo olhar sobre Bertha e seu entorno, que é modificado a cada nova inserção de Bastide entre eles. Os vizinhos, o filho, a neta, e a própria personagem são reescritos a partir desse novo contato, que revela no filme um suco de Brasil muito mais concentrado do que se gosta de assumir. Não é como se fosse possível deixar de enxergar o medo a cada esquina, porque ele está ins, erido até dentro da ‘casa grande’. 

Que o filme deliberadamente escolha suavizar dentro do coloquialismo todo um sistema de castas sociais que ainda é obedecido em inúmeras partes, é uma opção de Porto Príncipe. Quando a produção encara as encruzilhadas do horror dispostas à sua utilização e centra seu olhar na aproximação direta, temos uma leitura mais frontal sobre o que acontece, mas menos imaginativa. Em um tempo onde todas as histórias se consideram contadas, sua forma é uma maneira de oxigenar o conteúdo, e disponibilizar ao público uma capacidade de fabulação em cima desse mal estar. É como se, entre utilizar referências modernas de cinema e uma estrutura clássica-narrativa, o filme escolhesse ficar com as duas opções, um Corra que, na dúvida, escolhe pacificar-se. E sabemos que essa não é uma ideia viável, a de mergulhar em mais de um lado. 

Embora haja uma procura pelo resgate de uma verdade estrangeira, Porto Príncipe se coloca como refém da imagem, e de zona de observação da repetição do que se sabe, quando se debruça sobre um material gráfico que se repete, de arquivo. Quando o corpo, o rosto e a voz de Diderot Senat se manifesta, quando seu olhar se perde no horizonte, a produção explode na tela; quando sua evasão enfim acontece, percebemos que nós estávamos o tempo todo atrás de Senat, e no interesse dele. Tem mais de um filme dentro desse roteiro, e o que tem o maior desenvolvimento, também é o que demonstra maior segurança em sua busca narrativa. Não se trata de preferência quanto às escolhas da produção, mas de uma constatação que fica clara na explosão de Bastide – tem um outro filme nas entrelinhas gritando para nascer, e que não o faz. 

Um grande momento

Finalmente Bastide se coloca a respeito do diálogo no carro

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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