(Central do Brasil, BRA/FRA, 1998)
Da dificuldade de comunicação ao afeto. Esse é o caminho trilhado por Central do Brasil. O filme conta a história de Dora, uma professora aposentada que complementa a sua renda escrevendo cartas na estação Central do Brasil, e Josué, um menino que acabara de perder a mãe e procura pelo pai que não conheceu. Na atualidade informatizada, imersa no mundo da internet, talvez o filme não faria muito sentido, uma vez que todos se procuram e se encontram online.
Mas não faz porque a realidade é outra. Porque os abismos sociais ainda são os mesmos e, ainda que o índice de alfabetização tenha aumentado, ainda há uma grande parcela da população que não sabe ler e escrever, assim como não são todos que tem o acesso à tecnologia. No filme, esse papel de comunicabilidade cabe à amargurada Dora, representante de outras classes menosprezadas pelo governo neoliberal que impera por aqui: professores e aposentados.
Central do Brasil faz sua crítica à exclusão na contradição das duas personagens protagonistas. Se ambas se igualam no lugar da solidão, se diferenciam no modo como querem viver as próprias vidas. Enquanto Dora é alguém que desistiu e se entregou, permitindo a corrosão do próprio caráter, Josué é cheio de esperanças, enxerga a vida com otimismo e carrega consigo a marca da delicadeza, até mesmo quando não está bem.
E nesse choque entre as diferenças que um começa a modificar o outro. Se a escrevinhadora de cartas não se importava com as pessoas que supostamente ajudava, com sua gaveta de cartas não enviadas e o lixo cheio de outras que ela achava que não mereciam ser postadas, agora tem que cuidar de um menino que apareceu em sua vida e ajudá-lo em sua jornada. O roteiro de Marcos Bernstein e João Emanuel Carneiro pontua diferenças com a presença de Irene, alguém como Dora, mas que não desistiu e tem em si muitas das características de Josué, e com a dupla de irmãos Isaías e Moisés, um reencontro com a desilusão e a esperança que antes representavam os dois protagonistas.
Em sua construção, Walter Salles possibilita a transmutação da realidade em ficção e, porque não dizer, também o inverso. São participações que se confundem na opção pelo realismo, sem nunca abandonar totalmente o tom documental. Seja na identificação das cartas-depoimento ou na própria credibilidade dos personagens que cria e entrega para um elenco competentíssimo, o diretor sabe que caminho trilhar.
E fica mais fácil para ele quando tem uma Fernanda Montenegro em estado de graça, talvez em sua melhor atuação no cinema, e sua química perfeita com o jovem Vinícius de Oliveira, um ex-engraxate descoberto pelo próprio Walter. Complementam o elenco, nas já citadas pontuações, Marília Pêra, Matheus Nachtergaele e Caio Junqueira, além de Othon Bastos e Otavio Augusto, em papéis complementares.
Além de toda a profundidade dos personagens, a abordagem e as atuações, o filme é de um acerto estético impressionante. A fotografia de Walter Carvalho vai clareando e abrindo espaço ao sair do tumulto escuro da capital e encontrar a vastidão empoeirada das entranhas do Brasil, representa não só a transformação de Dora, como o próprio país, em suas dicotomias e contradições. A bem empregada trilha musical de Jaques Morelenbaum e Antonio Pinto e a montagem precisa de Felipe Lacerda e Isabelle Rathery dão ritmo à jornada.
Ainda que apoiado no passado, Central do Brasil mantém-se atual. Lançado em 1998, ainda é um retrato de um Brasil enorme que faz questão, e agora mais do que nunca, de manter a separação e a exclusão, onde realidades são diametralmente opostas, maior parte da população é menosprezada e as oportunidades são para poucos.
Um Grande Momento:
Josué correndo no meio da procissão.