Crítica | Streaming e VoD

Clonaram Tyrone!

Uma surpresa sem moldes

(They Cloned Tyrone, EUA, 2023)
Nota  
  • Gênero: Comédia, Ficção Científica
  • Direção: Juel Taylor
  • Roteiro: Tony Rettenmaier, Juel Taylor
  • Elenco: John Boyega, Jamie Foxx, Teoynah Parris, Kiefer Sutherland, Tamberla Perry, J. Alphonse Nicholson, Eric Robinson Jr, Trayce Malachi
  • Duração: 117 minutos

Nos querem quietos, manobráveis, obedientes e pacatos. Nos querem longe de conotações políticas, fáceis de rastrear e prontos para redenções tranquilas. Nos querem levar adiante com suas táticas de destruição em massa, e poder decidir entre eles quando vivemos e quando morremos, e o quanto. Em uma das semanas mais intensas dos últimos anos para o audiovisual, os cinemas do mundo estrearam Oppenheimer e Barbie, e nos brasileiros ainda tivemos espaço para Fogo-Fátuo, Fantasma Neon e Luz nos Trópicos; a Netflix ataca de Clonaram Tyrone!, facilmente um dos seus melhores e mais surpreendentes filmes de 2023. Politicamente e socialmente impactante, o filme está sendo lançado com algum alarde, mas sem a metade do que merecia; sua descoberta é urgente, seu potencial de diálogo (cinematográfico inclusive) é inescapável. 

Vejam a atmosfera onde se encontram os personagens de Clonaram Tyrone!: um bairro infestado de marginalidade de todas as definições, ou seja, pessoas à margem social. Não apenas o malfeitor propriamente dito, mas a prostituição, a mendicância, a juventude sem estímulos ou referências, um grupo de pessoas à espera de um, digamos, ‘cabresto’ que os movam adiante, na direção de quem o Poder propuser. Assim nasce a redoma de um filme que se comunica com uma ideia de libertação contemporânea, que forneça palco para um debate a respeito de transformações através de uma reivindicação pela liberdade que seja autêntica. Com vontade de estabelecer ponte criativa entre o cinema de gênero e o fomento a possibilidades de comunicação com outras obras e autores, tais como Jordan Peele, Spike Lee e a onipresente Greta Gerwig. 

Clonaram Tyrone
April Olivia Ewell/Netflix

O filme é a estreia na direção de longas do roteirista Juel Taylor, que desde os créditos já deixa claro seu profundo apreço pelo ‘blaxploitation’, e sua tentativa de, ainda que precise empilhar mais ideias, homenagear um gênero e um tempo, sem perder a conexão com sua contemporaneidade narrativa. Assim sendo, Clonaram Tyrone! é uma ideia híbrida que passeia imageticamente por eras distintas, e se conecta às possibilidades de cada uma delas. São elementos cênicos que nos levam ao contato direto, e construção de planos que não exotificam o que é filmado, e sim promove um reencontro entre o passado e o futuro. Nesse caldeirão, vale uma atenção de seu roteiro (a cargo de Taylor e Tony Rettenmaier) que também nos diz que nada mudou em 50 anos – a violência, o descaso, a tentativa de apagamento e a certeza da impunidade contra quem está fora do que se apregoa dominante. 

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Se o trabalho de Taylor como roteirista poderia ser, maldosamente, tratado como uma espécie de dissidência do Black Mirror, a autoralidade da composição de sua mise-en-scene liberta Clonaram Tyrone! para uma sobrevivência independente. Não há em sua composição uma busca por uma linguagem pré-concebida, mas sim uma inspiração em quem o cineasta provavelmente acompanhou, e moldou sua visão, em particular. Através do seu olhar, o filme alça voos inimagináveis para quem acompanha o modelo de produção ‘netflixiano’ para longe dos títulos ‘premiáveis’ de cada ano; a fotografia de Ken Seng (de Deadpool) é um trabalho à parte que também nos permite adentrar o universo desconhecido que está sendo montado. Sem rótulos prévios, o que acompanhamos aqui vai além das paranoias típicas dos anos 1970 sobre perseguição política, e que também utilizam esse conceito prévio para dar camadas e ainda mais estofo ao que vemos. 

É como se a proposta de Taylor também mirasse na reciclagem, e através dela ele alcançasse uma jornada sua de contar esse acúmulo de elementos, que desembocam em algo de verdade pura. O olhar de um homem preto para a estruturação de um racismo que não está apenas vindo de cima para baixo, mas igualmente já foi absorvido por quem o sofre. Em algum ponto de Clonaram Tyrone!, o protagonista vivido com brilho por John Boyega desiste de levar seus planos de autocontrole adiante; diariamente, ele compra uma ‘raspadinha’ que anuncia “você perdeu”, de maneira repetida. É dessa bagagem que se vive ao ouvir constantemente que não adianta o que for feito, sempre será em vão; toda uma população relegada aos restos de sonhos alheios, nunca realizados. 

Clonaram Tyrone
April Olivia Ewell/Netflix

Graças a ambientação que coloca seus personagens em muitos recortes temporais, à transformação gradual do quadro, que ora está comungando o horror, ora a ficção científica, ora um ‘noir black’, ora um quadro futurista carregado de néon, Clonaram Tyrone! funciona como um experimento de constante busca. Sem obrigações que o transformem em algo estanque, o filme vibra na frequência da inquietação de linguagem e de formato, embora todas as conexões sejam válidas e compunham um quadro de coerência estético-narrativo. Como um camaleão em constante procura por uma nova roupagem que o converta em sua essência, essa excitação de imagens exploram a melancolia de se entender parte de um moto-perpétuo de continuidade fatal e a pulsão por uma vida que precisa ser resgatada todos os dias, em meio à rotina. 

Ainda que marginalizados, são personagens que igualmente refletem também um estado catatônico social que é imposto pelo alto da pirâmide. Transformando suas vivências em uma camada ininterrupta de tentativas que retiram qualquer humanidade do processo, o que vemos em Clonaram Tyrone! é a exposição de que mesmo as classes menos abastadas têm direito a reivindicar um esgotamento da máquina estatal de cobrança por resultados. Parece tudo muito sério e denso, mas isso tudo está assolado paralelo ao que o filme entrega de bom grado, que é sua organização enquanto produto audiovisual. Com um trio de protagonistas excepcional (além de Boyega, Jamie Foxx e Teyonah Parris se divertem e amplificam o show), o pacote que a Netflix entregou hoje é de uma alvenaria rara em se tratando de uma produção fora da zona de observação que ela mesma constrói. 

Um grande momento

Tiros no estacionamento

Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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