- Gênero: Drama
- Direção: Juho Kuosmanen
- Roteiro: Andris Feldmanis, Juho Kuosmanen, Livia Ulman
- Elenco: Seidi Haarla, Yuriy Borisov, Dinara Drukarova, Julia Aug, Lidia Kostina, Tomi Alatalo
- Duração: 107 minutos
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Há um lindo plano subjetivo, bem na metade de Compartment Nº 6, da protagonista Laura (Seidi Haarla) olhando pela janela uma estação desaparecer em meio à neblina, enquanto seu trem segue viagem. Ela acabou de perder algo que lhe era muito importante, que carregava memórias insubstituíveis. E a imagem é uma bela metáfora desse olhar para um passado ao qual ela estava até então se apegando e abrir mão dele, deixando-o para trás, onde é seu lugar.
Essa talvez seja a ideia indispensável a toda viagem – ou a toda boa viagem, pelo menos. Deixar para trás a vida que foi até ali – as pré-concepções, problemas, amarras, preocupações – e abrir espaço para o que vem a seguir: as experiências, surpresas, descobertas, aprendizados, mudanças. É abandonar o mundo como se conhece até então e abraçar um novo, que está prestes a se apresentar. O que vem a ser a mesma matéria-prima do belíssimo segundo longa do cineasta finlandês Juho Kuosmanen (O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki).
Adaptado do romance de Rosa Liksom, o filme vencedor do Grande Prêmio do Júri em Cannes segue Laura, jovem finlandesa estudando arqueologia na Rússia nos anos 1990, que parte numa viagem de Moscou a Murmansk para conhecer os famosos petróglifos do lugar. Para trás, ela deixa a namorada Irina (Dinara Drukarova), que a havia hospedado até ali e que teve que desistir da mesma viagem devido a compromissos de trabalho. E na longa jornada de trem até seu destino, ela divide o compartimento do título original com Vadim (Yuriy Borisov), típico jovem russo – beberrão, malandro, um pouco machista, desagradável e tóxico, e sem muita noção de limite e privacidade.
De cara, ele é o pior pesadelo de Laura (ou de qualquer viajante com o mínimo bom senso). E Kuosmanen explora bem a claustrofobia de se estar presa, não só no compartimento, mas num trem – um espaço bastante limitado – com alguém, no mínimo, obnóxio. A protagonista sente uma falta quase codependente da namorada, que se mostra fria e distante nas ligações ao telefone, está claramente ambivalente quanto à viagem – e Vadim não ajuda nada nessa situação. Ainda assim, inesperadamente, surge entre os dois uma conexão quase inexplicável, a que nem eles, nem o público, conseguem resistir.
A premissa pode soar uma espécie de Antes do Amanhecer nórdico-russo – e Compartment Nº 6 é meio isso mesmo. Um romance com sabor de vodca: forte, que bate fundo na boca do estômago e com um efeito/ressaca/impacto que dura por horas, ou dias, após a sessão. Mas não se trata de uma cópia, ou emulação. Apesar de bons diálogos, o longa finlandês é bem menos calcado na verbalidade que a trilogia de Linklater. Em espaços bastante restritos, ou inóspitos, Kuosmanen encontra uma linguagem bem mais visual, simples e eficiente, para encenar o arco da relação de Laura e Vadim – seja separando os dois em planos diferentes, mesmo na claustrofobia do compartimento, no estranhamento inicial, seja esquentando a temperatura da paleta com cores e luzes mais quentes à medida que os dois se aproximam.
Um dos elementos mais interessantes do filme, porém, é que Laura carrega uma câmera com a qual filma boa parte de sua viagem. E usando alguns takes do “material” da protagonista, o diretor finlandês deixa clara a ideia de que, para ele (e para o longa), cinema e viagem têm o mesmo princípio ativo: a ideia de se abrir para uma experiência nova, um mundo novo, buscando novas formas de olhar, novas imagens, uma nova forma de interagir com o mundo e de se abrir a ele.
E, sim, sobre todas essas camadas de subtexto, Compartment é um romance delicioso e inesperado, sustentado por duas excelentes performances. Haarla não tem medo de expor a insegurança e codependência de Laura, assim como seu asco um tanto elitista (e justificado) do vizinho de viagem. E Borisov opera quase um milagre com o arco de Vadim, fazendo o espectador ter uma antipatia imediata dele de início para, no final, revelar uma riqueza humana e uma fragilidade de partir o coração.
Os dois protagonistas experienciam o romance de formas bastante diferentes, mas se Laura é o ponto de entrada do público na história (é com ela que passamos todo o tempo), é inesperadamente Vadim, com sua inteligência emocional limitada e seus sentimentos à flor da pele que explodem do carismático rosto de Borisov, quem arrebata e por quem sentimos mais ao fim. O longa, porém, argumenta que talvez o final seja o menos importante porque, como diz a máxima, o que importa é a jornada, e não o destino. Para além do clichê, contudo, o que Kuosmanen e Compartment realmente demonstram é que, se você se lançar numa jornada com determinação, planejamento e coragem, pode chegar ao seu destino. Agora, caso se lance nela sem medo e de coração aberto ao que ela tem a oferecer, disposto a abraçar o imprevisível, algo ainda melhor talvez aconteça: você pode chegar a um lugar completamente inesperado.
Um grande momento
Laura abre uma folha com um desenho
O crítico viajou a convite da 66ª Semana Internacional de Cine de Valladolid
O critico tem todo o direito de expressar sua opinião sobre o filme , alias que convivido plenamente ,mas aproveitando o espaço e o meu direito a ter opinião ,discordo frontalmente do adendo que escreve sobre o que pensa de um mundo futuro onde não ve espaço para o homem branco e etero .Se hoje estamos aqui ,saídos das cavernas ,criado civilizações ,e tendo filhos que espalharampelo mundo ,do qual Daniel è um descendente , talvez tenha algo a ver com a humanidade ,homens e mulheres ,serem eteros e talvez brancos.