- Gênero: Suspense
- Direção: Paul Schrader
- Roteiro: Paul Schrader
- Elenco: Oscar Isaac, Tiffany Haddish, Tye Sheridan, Willem Dafoe, Alexander Babara, Bryan Truong, Britton Webb, Amye Gousset
- Duração: 111 minutos
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William Tell é um jogador. Não um viciado, um maníaco perdedor, ou um desses arruinados pela vida afora, emocionalmente. Ops, peraí… emocionalmente arruinado talvez William seja, mas o jogo não causou isso. A relação de William com uma mesa de jogatina é bastante pragmática: ela dá, William leva; ela toma, William sai. Por isso não importa muito entender as vitórias e derrotas em O Contador de Cartas, porque a relação que interessa nasce entre seu protagonista e a sua palavra. Embora não seja necessariamente um sujeito falastrão, reside no personagem um senso de honra diferente do que o cinema americano geralmente filma. Ele pode até nascer na origem desse sentimento do que geralmente entendemos diante do americano comum, mas sai desse espaço para ocupar outro, muito mais particular e íntimo. É o homem e sua métrica, exclusivamente.
Ao redor desse fardo que ele carrega – cumprir um dever, acima de tudo – está um universo que parece ser o espaço cênico do filme, vidas solitárias em busca de um sentido que se resolve em minutos diante de um pano verde. A Tell não interessa ganhar, ser rico, esbanjar sua sorte e empilhar conquistas; ele faz o que precisa ser feito, sem criar laços afetivos ou materiais. A chegada de Cirk (com C) em sua vida o faz perceber a importância do suporte, sem jamais deixar de lado sua relação quase obsessiva com a realização de uma função – na verdade, até aprofundando essa sua percepção. Encontrar Cirk é como ver seu reflexo 20 anos antes, na mesma rota de colisão psicológica, e encontrar um futuro para o menino, um que se aparte de sua vida, parece a coisa certa a fazer. Mais uma vez.
Por trás de O Contador de Cartas está um dos grandes nomes do cinema, Paul Schrader. Sem ter tido um declínio propriamente dito, o roteirista e cineasta recuperou a confiança da cena cinematográfica (seja a indústria, seja a cinefilia) com seu longa anterior, o formidável conto moral – entre muitas outras coisas – Fé Corrompida. Aqui, Schrader volta a ecoar Robert Bresson na forma como desenvolve a linha reta entre o que o Homem quer e sua inegável bússola, que não o deixa sair do trilho auto imposto. Aos 76 anos, o cineasta divide com seu colega francês nesse tomo atual de sua obra essa profunda ligação com o dever e a leitura de certos indivíduos para com essa inescapabilidade. O que ecoa narrativamente na produção não é suficiente em ação para provocar um retorno; mesmo que a sorte tenha sido lançada, a seta do Homem é muito mais eficaz.
A forma como Schrader filma essa disputa entre o ser humano e a sua devoção cega ao dever não pode ser mais objetiva, traduzindo em imagens as características frontais do próprio Tell. A câmera o segue pelos corredores de cassinos, motéis baratos de beira de estrada e corredores imundos de uma “outra vida” sempre sedenta por aproximação, e o protagonista, claramente, blefa com o espectador. A imagem revela a verdade e a complexidade por trás daquela história simples, porém o próprio personagem se traveste da função que desempenha nas aparências. Ele manipula o centro da câmera para que seja comprada a sua versão dos fatos, como um bom jogador – e ele é um dos excelentes na função. Quando o parceiro de Martin Scorsese em Taxi Driver deturpa a imagem, com uma lente olho de peixe, sua deformação imagética traduz o tempo do esquecimento, repleto de possibilidades do horror; quando Tell atinge o ponto máximo desse horror, a lente desaparece, e emerge dos planos a verdade.
A forma como o roteiro de Schrader extrapola a força das entrelinhas, levando-as a um campo ainda mais catártico, é a amostragem de suas qualidades. Existe um adversário de jogo do protagonista, uma figura alegórica e pouco discreta, que circula a narrativa. Incessantemente gritando por “USA!” junto a uma turba barulhenta, esse grupo é identificado como estrangeiro pelos personagens, e é a representação capital (e secular) da América, o rolo compressor que segue alheio às nossas intenções decepando o seu entorno. Não há como fugir de identificar o conteúdo político de O Contador de Cartas, um filme em tudo antibelicista mas que observa o trator de um Estado genocida e catalisador de seus feitos tendo a certeza de que os fins serão sempre os mesmos para os filhos da pátria, uma mãe ausente por escolha de seus próprios rebentos, formados nessa escola de destruição.
São bonitas as escolhas de Schrader para tratar seu protagonista, resistindo às tentações de tragédias constantemente anunciadas para tentar observar o outro lado de suas ações. É tempo de reconstruir pontes, no que Tell é muito consciente em propor aos seus coadjuvantes; não há o que fazer a respeito do passado, e ele sempre foi muito signatário do presente, mas e quando o futuro for uma realidade, mais do que isso, uma distinção repleta de possibilidades? Schrader nos mostra que, ao contrário do que possam todos estar dizendo e apontando, o caminho das coisas depende exclusivamente do indivíduo, e nisso O Contador de Cartas tenta ser o mais delicado possível, dentro de seu mote tão melancólico – não há lugar para o amanhã quando só nos interessa o hoje.
Um grande momento
O acerto final entre Tell e Cirk (com C)