Crítica | Catálogo

Quem Tem Medo?

Nós, passarinho

(Quem Tem Medo?, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Dellani Lima, Henrique Zanoni, Ricardo Alves Jr.
  • Roteiro: Dellani Lima, Henrique Zanoni, Ricardo Alves Jr.
  • Duração: 70 minutos

A palavra “expulso” sai da boca de Wagner Schwartz como um suspiro, que precede um silêncio posterior breve. Não é mais do que um lampejo de momento de um desabafo, mas que guarda em si uma importância de alcance absurda dentro do cansaço que todo o processo que ele relata adquire. É um misto de tristeza, desamparo e solidão que exaspera de seu discurso, e que está impresso em qualquer profissional que se dedicou à arte entre 2019 e hoje, no Brasil. Quem Tem Medo? é brutal em sua entrada em um universo de desolação que atingiu a classe artística provocadora brasileira ao ser colocada à frente desse governo carrasco com qualquer tipo de manifestação em relação à diversidade. A cultura não deveria mesmo ser protegida por eles, quando nada foi – nem a população. 

Dirigido, roteirizado e montado por Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr., o documentário não é fácil de ser assistido. Diante da realidade que vivemos nos últimos anos, dar de cara com novos encontros com políticos que coadunam ideias com as do atual mandatário da cadeira mais importante do país é a certeza do estômago embrulhado constantemente. Nada do que está em cena, na montagem da produção, é indevido; ainda que sejam imagens que nos coloquem entre a estupefação e o mais profundo asco, sua utilização é o contraponto ideal entre o que está sendo combatido e o que está no poder. São vozes doentias que pronunciam sua mais profunda ignorância e falta de humanidade contra pessoas que só querem promover uma via de discussão social com sua arte. 

Quem Tem Medo?
Dellani Lima

Mergulhar uma vez mais nessas imagens emocionalmente extenuantes, que pregam a perpetuação do horror nosso de cada dia, é amenizado por todos os personagens da produção, um grupo de artistas que teve suas obras censuradas justamente por tentar dialogar. Mas como diz Schwartz, não há qualquer interesse entre essas pessoas em observar o mundo ao seu redor, que é sim diferente da realidade deles, e que bom que as coisas são diversas e múltiplas. Schwartz, Renata Carvalho, José Neto Barbosa e outras companhias teatrais têm muito mais a oferecer ao espectador – sua visão de mundo, sua voz dissonante que conclama o debate, sua própria postura transgressora diante da arte mais tradicional. A ruptura que cada um deles propõe não é um experimentalismo vazio, mas um reflexo de inúmeros artistas que repensam suas obras para instigar todos os sentidos. 

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As experiências de cada um desses artistas, e das relações de suas obras com o mundo em que vivemos, o desse desgoverno ou até o mundo anterior a ele, é de uma fina aula de como viver em uma sociedade que debate, cuja transgressão deveria ser absorvida de maneira positiva. O dissenso a que se propõem esses artistas traduzem da melhor forma o que deveria ser o papel da arte, em qualquer tempo – provocar, debater e expandir vozes. O papel do artista não é inteiramente concluído quando ele não chacoalha o espectador na direção de outras formas de pensamento, de outras vivências que não representem uma zona de conforto para as formas de discussão vigentes. O que Quem Tem Medo? celebra, a meu ver, é a necessidade orgânica e diária de questionar o status quo, que a arte tem em sua essência e de maneira mais pura. Negar essa possibilidade é retroceder enquanto sociedade. 

Quem Tem Medo?
Dellani Lima

Quem Tem Medo? é dividido em cinco blocos, sobre a censura sofrida por cinco artistas e/ou suas obras, de maneiras distintas. Ainda que não falte potência a nenhum dos segmentos apresentados, o trabalho de organização do material é mais vigoroso nas três primeiras apresentações. Quando passamos a acompanhar os responsáveis por “Caranguejo Overdrive” e “RES Pública”, a interação com nosso emocional já está mais anestesiado por tudo que foi visto anteriormente, e os seus grupos não apresentam renovação de vigor às suas falas, que já tinham sido ocupadas pelos anteriores. Não é o caso de não tê-las no projeto, mas da maneira como a montagem os dispôs em cena. Existe também um elemento investigativo pessoal que perpassa os três primeiros segmentos, que não estão dispostos nos dois últimos; talvez tenha faltado um mergulho maior naqueles artistas. É compreensível a união desses projetos em bloco, mas o filme teria muito mais impacto, por exemplo, se encerrasse com a visão de Renata e as imagens de seu “Manifesto Transpofágico”. 

No entanto, nada muda o quanto Quem Tem Medo? é uma obra de profunda reflexão sobre os tempos que vivemos nesses últimos quatro anos. É um filme que manifesta outras maneiras de pensar, talvez as maneiras corretas de portar-se diante de uma obra de arte, mas sem jamais deixar de pensar o tempo em que vivemos, e o material humano disposto à nossa disposição. A obra consegue compreender não apenas os seus personagens, suas posturas enquanto artistas e suas trajetórias, mas traduzir seus pensamentos em direção ao que os mesmos produzem enquanto arte. Ter esse contato e ver o material produzido por essas pessoas nos deixa claro um clichê bem óbvio: esse governo passará – e será punido por seus crimes, se os deuses e deusas quiserem – e a Arte, ah, essa mocinha é eterna. 

Um grande momento
A fala de Wagner Schwartz

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Francisco Carbone

Jornalista, crítico de cinema por acaso, amante da sala escura por opção; um cara que não consegue se decidir entre Limite e "Os Saltimbancos Trapalhões", entre Sharon Stone e Marisa Paredes... porque escolheu o Cinema.
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