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Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor

Um jeito único de sofrer

(Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor, BRA, 2022)
Nota  
  • Gênero: Documentário
  • Direção: Alfredo Manevy
  • Roteiro: Alfredo Manevy, Marcia Paraiso, Armando Almeida
  • Duração: 96 minutos

Esses moços, pobres moços
Ah! Se soubessem o que eu sei
Não amavam, não passavam
Aquilo que já passei

Folhetins musicais. Dores de amor, traições e vingança. Lupicínio Rodrigues, o Lupi, era mestre em colocar o sofrimento amoroso em seus sambas-canções. Ele também compôs marchinhas, o hino do Grêmio, mas foi mesmo na dor de cotovelo e na cornitude que se destacou. “Esses Moços”, “Nervos de Aço”, “Se Acaso Você Chegasse”, “Vingança”, “Ela Disse-Me Assim”, “Nunca” e “Volta” são canções que ficaram para sempre, mas a atenção às suas composições e até a Lupi como intérprete nunca foi a que deveria ter sido. O documentário Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sonhador, de Alfredo Manevy, resgata a história do artista, desde sua infância na Ilhota, um dos núcleos de concentração da população negra de Porto Alegre, passando por suas paixões frustradas, os relacionamentos duradouros, a vida boêmia e o pouco reconhecimento.

O dispositivo são antigas entrevistas dadas entre os anos de 1968 e 1974, quando ele faleceu. Entrecortando a fala que remonta antigas histórias, estão pequenos excertos poéticos melosos que não negam a autoria. Um rico material de arquivo, com vídeos e fotos, ilustra o filme, que também resgata e propõe entrevistas com nomes famosos da música. Cazuza, Gilberto Gil, Elza Soares e outros, além de familiares contam casos e dão suas impressões pessoais e técnicas sobre ele. Como um bom documentário musical, há muita música e é aí que o filme encontra o seu ponto de maior interesse, quando consegue se apropriar das canções para realmente ilustrar o documentado e sua importância para a música brasileira. Muito se diz da capacidade letrista, por exemplo, com Gal entoando “Volta”; ou do vanguardismo do intérprete Lupi, em uma época de tanta empostação vocal; isso sem falar de toda a consolidação de um gênero temático.

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Quase sempre são passagens explicadas no longa, algumas imediatamente após a execução, outras em repetição, o que talvez prejudique um mergulho mais sensorial e de descoberta, mas que não tiram o interesse. Há toda uma lógica criativa originada na vida real e um pensar musical/melódico que se revelam com as interações. Além disso, há, inclusive, ótimos momentos como a história de Soares conhecendo aquele que a fez surgir para a música, e curiosidades desconhecidas do grande público até aqui, como a da autoria nunca creditada a Lupicínio de “Se Acaso Você Chegasse” no filme Dançarina Loura, de 1944, que viria ser indicada ao Oscar. Além de ser uma figura interessantíssima, muitas passagens e encontros são curiosos e fazem com que se queira saber mais sobre a vida daquele homem, e o diretor sabe como costurar tudo isso com a obra de seu documentado.

Seguindo o tom de homenagem, caminho que se estabelece desde os primeiros momentos e cativa, sem incomodar, Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sonhador não mantém o mesmo vigor quando adentra demais na esfera familiar, perdendo-se em pormenores íntimos relatados por terceiros que não têm a mesma força e estabelecendo uma outra atmosfera. Um certo prolongamento de passagens, quando se estabelecem novas configurações — o público deixa de ser o receptor único de Lupi, passando a ter, além das imagens de Manevy, mais um intérprete, ainda que ele seja Gil — e ausências ressentidas fazem também o filme ir se perdendo em sua parte final.

Porém, não há como negar que é um longa que faz justiça por tornar possível conhecer um pouco mais sobre a vida e a obra de um dos maiores letristas populares brasileiros, que inovou estilo e tema ao abraçar a simplicidade e aquilo que há de mais comum. Lupicínio Rodrigues, autor de músicas jamais esquecidas, marcou o seu tempo e influenciou gerações, mas, longe do eixo, marcado por todo o preconceito de um país que comumente não valoriza aquilo que tem — principalmente se questões de raça e classe perpassam essa relação — nunca foi realmente reconhecido por isso. Que bom agora estar na telona.

Um grande momento
Eu não gosto de rosas.

[18ª Mostra de Cinema de Ouro Preto]

Cecilia Barroso

Cecilia Barroso é jornalista cultural e crítica de cinema. Mãe do Digo e da Dani, essa tricolor das Laranjeiras convive desde muito cedo com a sétima arte, e tem influências, familiares ou não, dos mais diversos gêneros e escolas. É votante internacional do Globo de Ouro e faz parte da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Critics Choice Association, OFCS – Online Film Critics Society e das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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